Porque os avós ocupam um lugar importante na vida dos netos, e os netos um lugar especial na vida dos avós, sendo capazes de estabelecer entre eles relações únicas, dominadas pela confiança e pela cumplicidade, com ganhos para ambas as partes, e porque se aproxima o Dia dos Avós, fizemos uma seleção de seis títulos, dos quais emergem algumas das representações dos avós na atual produção literária para a infância.
A representação dos avós (e dos idosos) vai ganhando expressão enquanto tendência temática da atual literatura para a infância: questões como a sabedoria, a memória, o envelhecimento, a doença e até a morte fazem parte do vasto leque de publicações sobre o tema.
Para comemorar esta efeméride, num ano invulgar, em que a relação (sobretudo de afetos) entre avós e netos também se viu confinada, escolhemos avós que partilham, de diferentes modos, o dia-a-dia com os seus netos.
Equitativamente distribuídos por género: três avós e três avôs literários.
De forma mais ou menos explícita, a reflexão sobre a passagem do tempo, e o que fazemos com ele, marca presença em boa parte das obras sobre este tema. Em O Relógio da minha Avó, de Geraldine McCaughean e Stephen Lambert, esta é a questão central.
Partindo da descoberta de um relógio de pé avariado, o neto narrador enceta um belíssimo percurso de descoberta de outros "relógios", que é também um caminho de aprendizagem do Belo, e um hino às pequenas coisas e aos pequenos gestos de cada dia, de cada estação...
"A avó disse:
- Posso contar os segundos pelas batidas do meu coração. Já reparaste que os segundos passam mais depressa quando a vida é emocionante?"
(...)
"A vida, é claro, pode ser medida de maneiras diferentes: pelos aniversários, pelos amigos, pelo que possuis... ou pelo que recordas. Mas quando se tem muita sorte, como nós, e chegam os netos, sabes que a vida completou o seu círculo". (G. McCaughrean, 2005)
Em À procura de ontem, de Alison Jay, uma obra recentemente chegada a Portugal (2020), encontramos um avô com uma inusitada missão: ajudar o seu neto a compreender que, embora as memórias tenham um lugar e um papel muito importante nas nossa vidas, o melhor dia é sempre o de HOJE.
"- Avô, ajudas-me a encontrar o caminho para ontem?
- Porque queres voltar para ontem?
- Porque foi o melhor dia de sempre, Avô!
- Foste feliz ontem, mas ainda virão muitos dias felizes. Deixa-me contar-te como foram alguns dos meus melhores dias." (A. Jay, 2020)
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Em O Rosto da Avó, de Simona Ciaraolo, o tempo é percorrido em rugas, que contam histórias. No dia do seu aniversário, interpelada pela neta que julga ver um vislumbre de tristeza no seu rosto, a avó deste belíssimo álbum narrativo, que conjuga pequenos segmentos de texto com exuberantes ilustrações que o completam, oferece à neta um legado de histórias, a que correspondem memórias que marcaram a sua vida.
Trata-se de um trabalho particularmente interessante na construção da memória afetiva, e no estreitamento de laços intergeracionais. Imaginar que os avós também já foram crianças, jovens rebeldes, que sofreram, mas que também riram até às lágrimas, apesar do grande valor que encerra, é uma tarefa pouco usual. Este álbum é um delicioso convite a (re)visitar a infância e a juventude dos avós, num genuíno gesto de aproximação àquilo que é a essência da natureza humana.
"- E nestas [rugas]?
- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô." (S. Ciraolo, 2017)
De uma extraordonária delicadeza nas palavras, e de uma originalidade ímpar nas ilustrações, esta obra dá a conhecer, pela voz do narrador criança (o neto), uma forma possível de convívio com a doença. Desde o difícil momento de ouvir a explicação dos pais sobre o que se passa com o avô, passando pelo questionamento e pelas angústias próprias da impotência perante o inevitável, o neto desta história, recuperando as muitas histórias (memórias) que o avô lhe havia contado, encontra uma solução:
"O avô tem uma borracha na cabeça?
Pois nós somos um lápis!" (R. Zink, 2020)
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Pormenor do miolo de O Pássaro da Avó |
O Pássaro da Avó é um dos mais recentes trabalhos de Benji Davies (2019). Protagonizado por uma das personagens mais conhecidas dos álbuns do autor, o pequeno Noé, este ternurento livro mostra-nos como os netos podem ter um papel transformador na vida dos avós.
Com cheiro a maresia e sabor a algas, alternando entre cenários de azul e de tempestade, esta narrativa, que tem como pano de fundo emocional a solidão, é construída de uma sucessão de pequenos episódios (milagres?) capazes de expandir e preencher o universo solitário da avó.
"Quando a tempestade passou, os pássaros seguiram viagem. Só o pássaro do Noé não se queria ir embora.
- Acho que ele gosta de ti, Avó." (B. Davies, 2019)
O avô desta história é alfaiate e, quando o José nasceu, ofereceu-lhe uma manta, uma manta que se irá salvando sucessivamente do "destino fatal" de um "objeto velho", graças à arte transformadora da ressignificação, que o avô lhe imprime no seu ateliê, como quem cose um destino com pontos de afeto.
E quando parece não ser possível construir mais nada, pois a manta já havia sido transformada tantas vezes... eis que a história continua:
"Desta vez, o avô não disse nada depois de ter ouvido o José contar o que se tinha passado. O José estranhou aquele silêncio demorado, mas ficou ali à espera, porque quanto mais olhava para a cara do avô, mais lhe parecia que ele estava a medir, a cortar e a coser uma solução qualquer dentro da sua cabeça. E tinha razão, porque acabou por dizer:
- Sabes, José, afinal o botão não era um ponto final, porque acho que ainda temos aqui material suficiente para fazer..." (M. Gouveia, 2019).
"O meu avô passa muito tempo com as flores que tem no terraço. Diz que quer combater a noite com canteiros." (A. Cruz, 2019, in Paz traz Paz) |