sábado, 25 de julho de 2020

Que avós povoam a atual literatura para a infância?

Porque os avós ocupam um lugar importante na vida dos netos, e os netos um lugar especial na vida dos avós, sendo capazes de estabelecer entre eles relações únicas, dominadas pela confiança e pela cumplicidade, com ganhos para ambas as partes, e porque se aproxima o Dia dos Avós, fizemos uma seleção de seis títulos, dos quais emergem algumas das representações dos avós na atual produção literária para a infância. 



A representação dos avós (e dos idosos) vai ganhando expressão enquanto tendência temática da atual literatura para a infância: questões como a sabedoria, a memória, o envelhecimento, a doença e até a morte fazem parte do vasto leque de publicações sobre o tema. 

Para comemorar esta efeméride, num ano invulgar, em que a relação (sobretudo de afetos) entre avós e netos também se viu confinada, escolhemos avós que partilham, de diferentes modos, o dia-a-dia com os seus netos. 
Equitativamente distribuídos por género: três avós e três avôs literários.

Pormenor do miolo de O Relógio da minha Avó

De forma mais ou menos explícita, a reflexão sobre a passagem do tempo, e o que fazemos com ele, marca presença em boa parte das obras sobre este tema. Em O Relógio da minha Avó, de Geraldine McCaughean e Stephen Lambert, esta é a questão central. 
Partindo da descoberta de um relógio de pé avariado, o neto narrador enceta um belíssimo percurso de descoberta de outros "relógios", que é também um caminho de aprendizagem do Belo, e um hino às pequenas coisas e aos pequenos gestos de cada dia, de cada estação... 

"A avó disse:
- Posso contar os segundos pelas batidas do meu coração. Já reparaste que os segundos passam mais depressa quando a vida é emocionante?"
(...)
"A vida, é claro, pode ser medida de maneiras diferentes: pelos aniversários, pelos amigos, pelo que possuis... ou pelo que recordas. Mas quando se tem muita sorte, como nós, e chegam os netos, sabes que a vida completou o seu círculo". (G. McCaughrean, 2005)

Pormenor do miolo de À Procura de Ontem

 Em À procura de ontem, de Alison Jay, uma obra recentemente chegada a Portugal (2020), encontramos um avô com uma inusitada missão: ajudar o seu neto a compreender que, embora as memórias tenham um lugar e um papel muito importante nas nossa vidas, o melhor dia é sempre o de HOJE.

"- Avô, ajudas-me a encontrar o caminho para ontem?
- Porque queres voltar para ontem?
- Porque foi o melhor dia de sempre, Avô!
- Foste feliz ontem, mas ainda virão muitos dias felizes. Deixa-me contar-te como foram alguns dos meus melhores dias." (A. Jay, 2020)


Pormenor do miolo de À Procura de Ontem


Em O Rosto da Avó, de Simona Ciaraolo, o tempo é percorrido em rugas, que contam histórias. No dia do seu aniversário, interpelada pela neta que julga ver um vislumbre de tristeza no seu rosto, a avó deste belíssimo álbum narrativo, que conjuga pequenos segmentos de texto com exuberantes ilustrações que o completam, oferece à neta um legado de histórias, a que correspondem memórias que marcaram a sua vida. 
Trata-se de um trabalho particularmente interessante na construção da memória afetiva, e no estreitamento de laços intergeracionais. Imaginar que os avós também já foram crianças, jovens rebeldes, que sofreram, mas que também riram até às lágrimas, apesar do grande valor que encerra, é uma tarefa pouco usual. Este álbum é um delicioso convite a (re)visitar a infância e a juventude dos avós, num genuíno gesto de aproximação àquilo que é a essência da natureza humana. 

"- E nestas [rugas]?
- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô." (S. Ciraolo, 2017)


Pormenor do miolo de O Rosto da Avó: resposta ilustrada ao segmento textual
 "- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô."

Pela mão de Rui Zink e Paula Delecave, vem a lume, também no presente ano (2020), O avô tem uma borracha na cabeça. Como facilmente se depreende pelo teor do título, trata-se de um trabalho de cunho fraturante, pela temática que aborda: as doenças associadas à perda da memória (neste caso concreto, a doença de Alzheimer).

Pormenor do miolo de O avô tem uma borracha na cabeça

De uma extraordonária delicadeza nas palavras, e de uma originalidade ímpar nas ilustrações, esta obra dá a conhecer, pela voz do narrador criança (o neto), uma forma possível de convívio com a doença. Desde o difícil momento de ouvir a explicação dos pais sobre o que se passa com o avô, passando pelo questionamento e pelas angústias próprias da impotência perante o inevitável, o neto desta história, recuperando as muitas histórias (memórias) que o avô lhe havia contado, encontra uma solução:

"O avô tem uma borracha na cabeça? 
Pois nós somos um lápis!" (R. Zink, 2020)

Pormenor do miolo de O Pássaro da Avó

O Pássaro da Avó é um dos mais recentes trabalhos de Benji Davies (2019). Protagonizado por uma das personagens mais conhecidas dos álbuns do autor, o pequeno Noé, este ternurento livro mostra-nos como os netos podem ter um papel transformador na vida dos avós. 
Com cheiro a maresia e sabor a algas, alternando entre cenários de azul e de tempestade, esta narrativa, que tem como pano de fundo emocional a solidão, é construída de uma sucessão de pequenos episódios (milagres?) capazes de expandir e preencher o universo solitário da avó.

"Quando a tempestade passou, os pássaros seguiram viagem. Só o pássaro do Noé não se queria ir embora.
- Acho que ele gosta de ti, Avó." (B. Davies, 2019)


Da autoria de Miguel Gouveia e Raquel Catalina (2019), chega-nos a extraordinária obra A Manta do José, uma adaptação de um conto da tradição judaica. Este pequeno (grande) livro, a que ousaríamos dar de subtítulo A arte de ressignificar, é um elogio à memória, à atribuição de sentidos e ao amor às coisas belas. 
O avô desta história é alfaiate e, quando o José nasceu, ofereceu-lhe uma manta, uma manta que se irá salvando sucessivamente do "destino fatal" de um "objeto velho", graças à arte transformadora da ressignificação, que o avô lhe imprime no seu ateliê, como quem cose um destino com pontos de afeto.

E quando parece não ser possível construir mais nada, pois a manta já havia sido transformada tantas vezes... eis que a história continua:

"Desta vez, o avô não disse nada depois de ter ouvido o José contar o que se tinha passado. O José estranhou aquele silêncio demorado, mas ficou ali à espera, porque quanto mais olhava para a cara do avô, mais lhe parecia que ele estava a medir, a cortar e a coser uma solução qualquer dentro da sua cabeça. E tinha razão, porque acabou por dizer:
- Sabes, José, afinal o botão não era um ponto final, porque acho que ainda temos aqui material suficiente para fazer..." (M. Gouveia, 2019).


Celebrar o dia dos avós é celebrar a vida, perpetuar a memória, e (re)escrever a própria história. Ou, como refere Afonso Cruz, é "combater a noite com canteiros".

"O meu avô passa muito tempo com as flores que tem no terraço.
Diz que quer combater a noite com canteiros."
(A. Cruz, 2019, in Paz traz Paz)

P.S.1: Também falamos de "livros com avós dentro" AQUI e AQUI.

P.S.2: Ao longo da última semana de julho, em jeito de homenagem aos avós, apresentaremos na nossa página de facebook e de instagram, uma sugestão diária de leituras sobre os Avós. Acompanhem-nos!




terça-feira, 14 de julho de 2020

Livros que convidam a percorrer o mundo

Nestas férias as viagens "reais" estão condicionadas. Mas as viagens proporcionadas pelos livros e pela leitura, não estão. Vamos tornar o nosso verão inesquecível, percorrendo o mundo com "Livros para ler com um globo ao pé".

Seleção literária para ler em família "com um globo ao pé"
  
Daniel Willingham (2016), autor de Formando Niños Lectores, no capítulo que intitula de “Acumular conocimientos para el futuro” (Willingham, 2016: 99-118), aconselha vivamente os pais a investir na compra de um globo: “Compra un globo terráqueo. Los globos terráqueos parecen una cosa anticuada en la era de Internet, y no son baratos; (...) Pero creo que son una buena inversión. No hay ningún sustituto para un globo terráqueo a la hora de ofrecer a tu hijo el sentido de la distancia geográfica. Y tu hijo hará descubrimientos sorprendentes durante años” (Willingham, 2016: 117).

Recursos que potenciam a leitura de obras literárias de índole intercultural:
"livro-globo" e dicionário por imagens das crianças do mundo.
Efetivamente, a nossa experiência no âmbito do programa ELF vem comprovando esse facto. A atual produção literária para a infância é pródiga em publicações que versam sobre temáticas ligadas à Interculturalidade e à Alteridade, leituras que se completam e que abrem novos horizontes de saber e de sentir com recurso a globos, planisférios, mapas, pequenas enciclopédias ou dicionários temáticos, etc.  
Apresentamos, então, três sugestões de leitura literária para ler e viajar em família, na quietude do jardim, nestas férias de verão.

Dupla página do miolo de O Alfabeto dos Países

O Alfabeto dos Países, de José Jorge Letria e Afonso Cruz, é uma obra que se compõe de 23 poemas curtos, alusivos a 22 países distintos, que, apenas obedecendo à ordem alfabética, vão atravessando continentes e fazendo paragens ao sabor das intenções e da mestria do autor, que já nos habituou a textos carregados de intertextos, dos quais espreitam áreas do saber como a História ou a Geografia, ao mesmo tempo que, problematizando questões sociais, económicas, ambientais e até políticas interrogam o leitor, convidando-o a ler o mundo sob diferentes perspetivas. As inúmeras curiosidades que integram os diferentes poemas transformam este álbum numa espécie de roteiro de viagem, do qual o conhecimento enciclopédico sai muito enriquecido, e a curiosidade altamente estimulada.

Pormenor do miolo de O Alfabeto dos Países (poema dedicado ao Quénia). Leitura que pode ser acompanhada pelo "livro-globo"(na imagem as páginas dedicadas ao continente africano)


O Mundo num Segundo, de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, é um álbum belíssimo, onde o encontro de culturas se torna imediato através do ingrediente tempo: no mesmo segundo multiplicam-se acontecimentos em todo o mundo. Ao leitor é oferecido um papel de personagem, de parte integrante dessa engrenagem que é a passagem do tempo, e o valor que cada um lhe atribui, de acordo com a zona do globo onde lhe coube nascer, ou escolheu viver.

Dupla página de O Mundo num Segundo
Convivem, nesta volta ao mundo, espaços interiores com espaços exteriores, de que são exemplo a casa, o carro, o elevador, a barbearia, a rua, a escola, o quintal, a estação de caminhos de ferro, a praia, o mar ou a floresta, que, por sua vez podem ser vistos enquanto realidades contrastantes, como campo vs cidade, trabalho vs lazer, agitação vs tranquilidade, tragédia vs comédia, tristeza vs alegria, obrigando a uma constante mudança de perspetiva, e favorecendo o encontro com o Outro. 


A encerrar a viagem, e para que o leitor possa confirmar as suas descobertas (ou descobrir o que ainda não conhece) encontra-se um planisfério, no qual estão assinalados os 23 lugares evocados ao longo da obra.

Dupla página de Se os animais escolhessem a sua nacionalidade
 Um registo diferente, a roçar o nonsense podemos encontrar em Se os animais escolhessem a sua nacionalidade, de Alice Cardoso e Cátia Vide. Trata-se de um livro bilingue, escrito em português e em inglês (que é também uma forma de encontro com o Outro, através da diversidade linguística). O registo humorístico de que se reveste este trabalho não deixa, porém, de apetrechar de curiosidades culturais ou históricas os pequenos textos que compõem cada dupla página, onde a ilustração, para além de uniformizar ambos os registos linguísticos, acrescenta sobretudo apontamentos humorísticos capazes de despoletar a vontade de compreender aquelas opções, ou mesmo de continuar o jogo das autoras.

Dupla página alusiva a Portugal em Se os animais escolhessem a sua nacionalidade
Esta breve seleção proporcionará, certamente, momentos ricos de descoberta e de partilha de saberes, que poderão partir do nosso pequeno mundo, que é a nossa casa e a nossa família até à grande casa que é o mundo e a alegre diversidade de povos e culturas que lhe dão cor e sentido.

Recuperando e atualizando algumas das sugestões que integraram o Programa ELF, propomos duas atividades que poderão transformar-se não só em momentos de aprendizagem coletiva, mas sobretudo em memórias afetivas felizes.

1. Planisfério literário

Imprimir (ou desenhar) os contornos de um planisfério e personalizá-lo de acordo com as descobertas que foram feitas nas obras lidas, associando, por exemplo, elementos que os autores tenham referido, ao país em questão (através de registos escritos, do desenho, da colagem...).

2. Jogo de Cartas

Imitando o jogo das famílias (também conhecido como Peixinho), criar "famílias" com elementos alusivos a alguns dos países presentes nas obras (ou outros). Poderá optar-se, em alternativa, por compor famílias de acordo com os continentes. Poderão incluir-se nestas "famílias" elementos alusivos à fauna, à cultura, à gastronomia, à raça... aproveitando as descobertas feitas nas sugestões de livros "para ler com um globo ao pé".


P.S. Se preferirem "ir para fora cá dentro", a partir dos livros, espreitem as sugestões que apresentamos para o dia de Portugal, e que têm por base a obra O Alfabeto dos Países.
(Partilhem connosco as vossas experiências! Divulgaremos aqui.)


Boas férias e boas viagens em família!