terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Representações do Inverno na Literatura Infantojuvenil: dos clássicos ao livro-objeto

Passada a Candelária, festa em honra da Senhora das Candeias, que se festeja a 2 de fevereiro, e que tem nas suas origens a comemoração do fim dos dias curtos e a consequente celebração da Luz, começamos já a vislumbrar o fim do longo inverno. E foi precisamente o comum uso desta expressão - longo inverno - que nos levou a ir em busca das representações que esta estação assume na literatura infantojuvenil. Dos clássicos ao livro-objeto, selecionamos um conjunto de dez livros, que nos mostram diferentes olhares sobre esta estação.

Seleção de obras "Representações do Inverno na LIJ"

Na maioria das obras que percorremos, o inverno aparece, inevitavelmente, associado ao frio, à neve, à chuva, ora desencadeando desconforto e dificultando a vida das personagens, ora transformando-se em oportunidade de crescimento, podendo também dar lugar a belos hinos, e deixando antever (quase sempre) a esperança, simbolizada pela promessa da primavera. 

Capa e pormenores do miolo de Uma História de Inverno, de Beatrix Potter

Beatrix Potter, a autora britânica das aventuras do incontornável Pedrito Coelho, um clássico da literatura infantil, decide, nesta história, que se apresenta num álbum de grande formato com belíssimas ilustrações, dar o protagonismo a dois vilões: o Texugo Frederico Fedorento e a Senhora Raposa Matreira, pois como a própria autora revelou:

"Já criei muitos livros sobre pessoas bem comportadas. Agora, para variar, vou contar-vos uma história sobre duas pessoas desagradáveis, o Texugo Frederico Fedorento e a Senhora Raposa Matreira."

É, pois, num cenário de neve, em plena floresta que os coelhos Pedrito e Casimiro se vão ver envolvidos numa missão de resgate dos filhotes da Rata Migalha, uma missão bem sucedida, como acontece nas narrativas desta autora, que, com alguma surpresa, desemboca no recolher dos vilões ao aconchego do lar. Um livro esteticamente muito interessante, que poderá também contribuir para familiarizar os mais novos com o universo de Beatrix Potter.

Capa e pormenor do miolo de As luvas do Capuchinho,
de Inés Almagro & Mikel Mardones

Cenário de neve e floresta tem também esta original reescrita do Capuchinho Vermelho, motivo que é causa de enorme estranheza, não apenas para o leitor, habituado a uma menina que corre e apanha as flores da primavera para levar à avó, como  para a própria protagonista, que diz:

"- que estranho! disse o Capuchinho enquanto enfiava o gorro na cabeça. - na minha história nunca neva!"

Por causa da neve, a menina não pode apanhar flores, não encontrou a árvore do lobo, e ainda perdeu o cesto com a merenda para a avó, ingredientes essenciais à história. No entanto, havia uma boa explicação para o que estava a acontecer, como descobriu Capuchinho, quando chegou à casa da avó e espreitou pela janela... 

Uma história que terá um encanto ainda maior, se acompanhada de uma chávena de chocolate quente.

(esta obra integrou a nossa seleção em Como tomar conta de um Capuchinho Vermelho)

Capa e pormenores do miolo de A casa da janela azul, de António Mota e Sebastião Peixoto

Esta obra faz parte da trilogia protagonizada pelos irmãos Fabi e Bitó, dois coelhos que descobrem o mundo e as suas leis, os seus ritmos e os seus ciclos, dos quais também faz parte a longa estação e os seus reveses. 

A paisagem desta história é visitada por ventos, chuvas, trovoadas e um enorme manto de neve que torna difícil a tarefa de arranjar comida. Mas desta paisagem fazem igualmente parte os passarinhos (sim, porque no inverno também há passarinhos), encontros com personagens peculiares como a Dona Cabrela, e improváveis amizades, como a de Niki, a pequena poltra, e os nossos coelhos. Um surpreendente e ternurento encontro encerra esta narrativa de aprendizagem do mundo.  

Falamos dos outros títulos desta seleção, a propósito das representações da MãeAQUI, e das representações do verão, AQUI, que têm como cenário a primavera e o verão, respetivamente. (estamos, pois, a aguardar um livrinho cor de outono para completar a coleção).

Capa e pormenores do miolo de Abrigo, de Céline Claire e Qin Leng

Esta obra, a mais recente da nossa seleção de inverno, que chegou até nós no final de 2021, partilha com as obras anteriores a paisagem e as agruras das intempéries da longa estação, mas presenteia-nos com uma belíssima história de altruísmo. 

Na floresta, depois de ouvido o anúncio da aproximação da tempestade, as várias famílias de animais recolhem às suas casas, providenciando comida e lenha. Um pequeno raposo questiona-se "E se houver alguém lá fora?" À medida que a tempestade avança, avançam também duas sombras, que vão pedindo, à porta de cada casa, e em troca de um pouco de chá, um pouco de lume, de aconchego ou alguns biscoitos, recebendo sempre a mesma resposta "Vão ver na porta ao lado". Só o pequeno raposo sai e oferece aos dois viajantes a sua lanterna. 

Pormenores do miolo de Abrigo, de Céline Claire e Qin Leng

Afinal, será a neve a salvar os dois estranhos e a luz oferecida a guiar a família das raposas, quando a sua casa desaba sob a tempestade. Uma história sobre o poder da bondade, que nos ensina que "o outro sou eu".

Capa e pormenores do miolo de Rosa Branca, de Christophe Gallaz e Roberto Innocenti

Esta obra, que tem como pano de fundo a segunda guerra mundial, e como tema central o holocausto, é um bom exemplo no que toca à carga simbólica associada ao inverno, como tempo longo e duro. 

Rosa Branca começa a contar a sua história, uma história vulgar, que poderia ser a de qualquer um de nós. Um dia chegam carros e camiões de soldados que invadem as ruas: "O inverno estava a começar", podemos ler no final do texto da primeira página (imagem acima). A narrativa avança com a descoberta de um campo de crianças no meio da floresta, a quem Rosa Branca passou a levar comida. Até ao dia em que na floresta já não havia crianças, e "se ouviu um disparo", o que deixou a mãe de Rosa Branca muito tempo à espera da sua menina...  

O realismo e o pormenor das ilustrações de Roberto Innocenti em muito contribuem para o poder que este belíssimo livro exerce sobre o leitor. Atente-se, por exemplo, nas imagens que reproduzimos acima (do lado direito), e que representam a mesma paisagem em momentos diferentes da narrativa. A paisagem verde, que encerra a obra, e que corresponde ao momento do fim da guerra, faz-se acompanhar do texto "A primavera estava a chegar".

Poemas O Inverno, de Eugénio de Andrade
 e Loas à Chuva e ao Vento, de Matilde Rosa Araújo

Mas o inverno também vive na poesia, tendo até inspirado belos textos, que ora se apresentam como hinos à Natureza, como acontece com as conhecidas Loas à Chuva e ao Vento, de Matilde Rosa Araújo, ora como composições mais humorísticas, como podemos ver no poema de Eugénio de Andrade, O Inverno. Ambos os poemas se encontram na imagem acima. São textos marcados pela melodia, pelo ritmo, e por uma forte componente sensorial, que nos faz experimentar as várias facetas desta estação menos amada.

Poemas Previsão de Tempo e Edital para a Hibernação,
de Manuela Monteiro e Catarina Correia Marques

Já nosso conhecido é este livro que, à boleia da poesia, nos faz viajar pelas quatro estações. Falamos dele AQUI e AQUI, a propósito da primavera; AQUI, integrando a nossa seleção de verão, e AQUI, para celebrar o outono.

Para esta seleção de inverno, escolhemos Previsão do tempo, um poema bem disposto, que transforma o pequeno leitor num super-herói a quem o inverno, e as "suas tropas", não assustam; e Edital para a Hibernação, um texto a que não falta, nem o humor, nem a esperança, como acontece, com alguma frequência, nas obras que têm como tema de fundo as Estações do Ano (podemos ver alguns exemplos AQUI). Os dois poemas podem ser lidos na imagem acima. 

Capa e pormenores do miolo de La Noisette, de Ane-Florene Lemasson e Dominique Ehrhard

La Noisette é um ternurento pop-up em língua francesa, que acompanha as aventuras de uma avelã que escapa às provisões do esquilo, e, que, apanhada desprevenida pelo inverno, acaba debaixo de um espesso manto de neve, a salvo de pássaros e ratos do campo. A esta pequena avelã, e também ao leitor, está reservada uma surpresa... que apenas se revelará na primavera.

Este é um livro que se serve da complexa engenharia do papel, que dá origem a cenários lindíssimos, que apetece explorar, para colocar o leitor em sintonia com a generosidade da mãe Terra, com o milagre do nascimento, e com a grandeza que escondem as pequenas coisas.

Degelo, de André Letria

A encerrar a nossa seleção, e na onda da materialidade do livro, deixamos esta sugestão de livro concertina, da autoria de André Letria, Degelo. Um livro que pode ter tantas leituras quantos leitores, que traz mais questões do que respostas, um livro de leituras múltiplas, portanto. A única coisa que, sem correr riscos de interpretações dúbias podemos dizer, é que é muito mais do que um livro sobre o inverno...

A todos desejamos uma estação quentinha, longa em bons momentos partilhados... e, se for com um livro de permeio, verão que a primavera se fará anunciar mais cedo.

[LMB]