sábado, 20 de junho de 2020

Representações do Verão na Literatura para a Infância

"O verão é o tempo grande", quem o diz é Maria Isabel César Anjo, no título do pequeno volume dedicado a esta estação do ano. Concordamos: verão pede vagar, pede um olhar demorado sobre a beleza que nos rodeia, pede mergulhos no verde dos campos, das montanhas, das florestas, dos rios e regatos... e pede livros! 



Fomos em busca do verão num conjunto de obras de potencial receção leitora infantil e encontrámo-lo em registos de diferentes épocas: descobrimos que as representações do verão de Aquilino Ribeiro, por exemplo, encontram eco nas de António Mota, e que o verão cantado por Eugénio de Andrade parece ser retomado por Manuela Leitão e Catarina Correia Marques... e descobrimos também que há na literatura mensagens que são hinos à natureza, que nos podem ajudar a restabelecer o tão necessário equilíbrio que nasce do conhecimento e respeito pelos seus ciclos, pelas suas estações, pelo seu tempo, e sobretudo pela sua generosidade.


Na literatura para a infância ainda encontramos as Quatro Estações do Ano (cujos limites se vêm tornando cada vez menos nítidos no plano real). Talvez como afirmação, como necessidade de recordar que somos todos habitantes de um mesmo cosmos (que tem as suas leis), talvez como alerta, como indicação de um caminho mais ecocênctrico  (alternativo ao exagerado antropocentrismo que tem vindo a caracterizar a sociedade).


Pormenor do miolo de O verão é o tempo grande

Da enorme sensibilidade que jorra dos quatro pequenos volumes de Maria Isabel César Anjo e Maria Keil (imagens acima) ao diálogo de linguagens que convivem em As Quatro Estações, de José António Abad Varela e Emilio Urberuaga, obra inspirada no trabalho musical de Vivaldi (falamos deste texto AQUI), ao humor e à leve sátira aos tempos modernos, que caracteriza O Zé e as Estações, de Luísa Ducla Soares e Raquel Leitão, até à riqueza sensorial que encontramos em Poemas para as Quatro Estações, de Manuela Leitão e Catarina Correia Marques, são evidentes as preocupações em materializar elementos característicos de cada estação, que contemplam aspetos ligados à fauna, à flora, mas também às ações ou hábitos próprios de cada estação, apresentando-os de forma bem definida e distinta, sem perder de vista a ciclicidade da natureza.

Pormenor da obra O Zé e as Estações, onde é possível verificar a presença de informação relativa ao tempo, à fauna, à flora e também aos hábitos (férias, gelados...)
Por vezes este trabalho é feito de modo implícito (mas eficaz), pela mão do ilustrador, que ao cenário e à ação da narrativa vai acrescentando informação sobre o passar do tempo, através da caracterização da paisagem. É o caso de uma interessante adaptação do conto popular inglês A Galinha Ruiva, de Pilar Martinez e Marco Somà, como podemos ver nas imagens abaixo. 





As obras que versam explicitamente sobre as estações do ano não se limitam, todavia, à apresentação do lado mais agradável de cada estação. Por exemplo, em As quatro Estações, de José Antonio Abad Varela e Emilio Urberuaga, o verão faz-se acompanhar de uma típica "tempestade de verão": 

Pormenor da obra As quatro Estações: excerto que acompanha a composição de Vivaldi "Trovoada de Verão"

As típicas tempestades de verão já marcavam presença na obra de Aquilino Ribeiro destinada à infância. No seu célebre conto Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia (Arca de Noé III Classe), a tempestade que acaba por levar a abóbora rio abaixo até ao moinho, deixando o Sr. José Barnabé Pé de Jacaré consternado é um dos elementos do enredo que completa todo o cenário de verão em que decorre a história, e que concorre para o seu divertido desfecho:
"- José Barnabé?
- Ué?!!
- Seria aquele papa-moscas ou o eco? E deitou a correr. Foi encontrá-lo à beira do rio, de olhos fitos na corrente, como se estivesse à espera de um bacalhau.
- Mulher - exclamou - lá se foi a aboborinha!
- Ai foi?! Pois se foi, nem telhado nem panelinha!
Em seu desafogo, mestre grilo fazia à boca da lura, para cigarras, ralos, rãs, sapos, a histórias - a sua história - da catástrofe dum dia de verão:
- Cri-cri-cri! Muito me eu ri!!! Ci-cri-cri!..."

Pormenor do texto Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia
Já em O dia em que o regato secou, o trabalho de António Mota e Sebastião Peixoto que completa a trilogia protagonizada pelos coelhos Bitó, Fabi e D. Fofa (Onde está a minha mãe, de que falamos AQUI, tem como cenário a primavera, e A casa da janela azul, tem como pano de fundo o inverno), é possível conhecer os hábitos de verão de uma grande diversidade de pequenos seres, como o facto de se refugiarem em tocas para fugir ao calor, e encontrar as representações mais terríveis do verão, como a seca e os incêndios. Neste interessante trabalho, a "tempestade" de verão é claramente apresentada como uma bênção:
"- Chuva de verão, chuva de verão! - gritou a cabra cabrela muito feliz (...)"
Das palavras que encerram este texto parecem, aliás, ecoar as vozes ancestrais ligadas aos rituais e celebrações dos solstícios:
"Quando chegaram à toca, e viram que no lugar do muro havia muita água, juntaram-se aos bichos que ali festejavam, e também dançaram com muita alegria" (imagem abaixo).  

Dupla página final de O dia em que o regato secou

Amoras
"Doces e formosas,
Talvez por serem da família das rosas
Recolho-as sempre no regaço"

Os aromas e os sabores do verão marcam especial presença na poesia. A coletânea Poemas para as quatro Estações dedica ao verão seis poemas, quatro dos quais em torno dos frutos: A que cheira o verão?, Na esplanada, Figo e Amoras, "ensinando" ainda ao leitor Como fazer o melhor castelo de areia, e o caminho para conhecer A menina de Sophia.

Pormenor da obra Poemas para as quatro estações: Na esplanada.
Falamos sobre esta obra AQUI, a propósito da Primavera, onde apresentamos sugestões de atividades.

Este verão sumarento marca também presença na coletânea Conversas com Versos, de Maria Alberta Menéres e Rui Castro, no divertido poema O almoço dos pardais:

Pormenor da coletânea Conversas com Versos
A poesia canta também o calor do verão, numa espécie de convite a abrandar. Quem não se recorda, por exemplo, do célebre poema Verão de Eugénio de Andrade (imagem abaixo), que integra a obra Aquela Nuvem e Outras?  

Pormenor da obra Aquela nuvem e outras: Verão.
Ou d'O Livro de Marianinha, de Aquilino Ribeiro e Maria Keil:

"Da minha varanda, defronte,
na luzerna e trevo da fonte
pastavam novilho e cordeiro,
qual deles mais lambareiro.

A mãe ovelha ficara no bardo
a mãe-vaca puxava ao arado.

Eu via-os comer, saltar, vadiar
enquanto caía um sol de rachar.

Era meio verão
inda a flor do trambolhão,
que anda com a sesta,
e a vagem da giesta
não sentia da estiagem,
a ardente bafagem.

No prado, por esta altura
tudo é vida de doçura."

Para que nada falte ao nosso verão, podemos seguir o conselho dos habitantes da obra de António Mota:

Pormenor da obra O dia em que o regato secou
Ou podemos seguir com Leonoreta de Eugénio de Andrade:

"Canção de Leonoreta

Borboleta, borboleta,
flor do ar
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta
Que me não levas contigo."


Demos, então, as boas vindas ao verão. Celebremos com a ajuda dos livros e das mensagens que a literatura encerra 
(e até a chuva de verão ganhará um novo significado).


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