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sábado, 22 de junho de 2024

O mundo seria melhor se os adultos lessem mais literatura infantil

O título deste texto é um excerto do testemunho de uma aluna de Licenciatura em Educação Básica (LEB) na aula de balanço da UC de Literatura infantojuvenil.

É sempre deste modo que encerramos o ano letivo. Os estudantes são convidados a responder a duas questões: o que levam da UC, e que livro de literatura infantil recomendariam a um adulto.

A leitura gratuita, o conhecimento de livros, em quantidade e diversidade, e as estratégias de abordagem à obra literária encontram-se entre os aspetos mais valorizados na UC.  No top+ das recomendações de livros LIJ aos adultos estão as representações dos avós, os temas fraturantes, os "livros perguntadores" e os álbuns poéticos.

Algumas das obras mais recomendadas pelos estudantes da LEB

Alguns estudantes referiram um antes e um depois desta UC, pelos horizontes que se abriram ao longo do ano, no que diz respeito ao livro e à leitura. Houve alunos que começaram a ler, e outros que retomaram o hábito. A frequência de bibliotecas tornou-se assídua para alguns, e as secções do livro infantil, em livrarias e grandes superfícies, passaram a ser de visita obrigatória. Houve estudantes que começaram a construir a sua própria biblioteca, e outros que começaram a oferecer livros aos familiares e amigos. 

É incontornável a questão do mundo novo que se abre a partir da LIJ.

"Um novo olhar sobre a Literatura Infantil", reflexão retomada muitas vezes neste balanço, que envolveu cerca de 70 alunos, encontra-se espelhado nos 36 títulos da LIJ, referidos como sugestões de leitura para adultos. Vamos falar um bocadinho desta seleção literária, e conhecer os livros e os motivos que estiveram na base destas recomendações. 

As representações dos avós são um dos temas de eleição deste público

Ao podium chegaram, em primeiro lugar, O Rosto da Avó, de Simona Ciraolo, As mãos do meu pai, de Deok Kiu Choi, e Se o mundo inteiro fosse feito de memórias, de Joseph Coelho, ex aequo.
"Este livro é um lembrete para criar mais rugas, que é como quem diz, viver mais", referia uma aluna a propósito de O Rosto da Avó, uma obra considerada um hino à memória, um acordar de histórias de vida, um espaço de nostalgia... (falamos desta obra AQUI).
Na verdade, a quantidade de títulos onde os avós são a figura central, evocados pelos estudantes, são reveladores da importância que têm nas suas vidas. Alguns alunos "encontraram-se" no livro, percebendo que "não estavam sós", como aconteceu com O avô tem uma borracha na cabeça, de Rui Zink e Paula Delecave,  ou com Maria Nêsperade Patrícia Martins e Joana Miguel, uma obra que é um hino à Terra, à Mulher, à Vida, às Sementes, à Ternura e ao Legado Feminino que pode passar de geração em geração; um livro onde a Saudade e a Esperança andam de mãos dadas.
"As nossas raízes e as memórias de infância estão sempre connosco", referiram alguns alunos a propósito destes títulos, e de outros como Jerónimo e Josefa, de José Saramago e João Fazenda ou a  A Manta do José, de Miguel Gouveia e Raquel Catalina, obra que também traz uma reflexão sobre "a valorização emocional das coisas", nas palavras de uma das estudantes (também falamos deste livro AQUI).
As mãos do meu Pai, um livro quase sem palavras, "atípico" como se lhe referiu uma aluna, teve na origem das recomendações motivos bem diferentes entre si. Quer junto de filhos de pais separados, onde a figura paterna se encontra pouco presente, quer junto de filhos com estreita ligação ao pai, quer pela reflexão em torno do envelhecimento e do caráter cíclico da vida, esta obra teve um forte impacto junto dos estudantes: 
Foi a propósito deste livro que foi apresentado o testemunho que dá título a este texto "o mundo seria melhor se os adultos lessem mais literatura infantil, lessem este livro." 
(esta obra fez parte da nosso "31 de livros", uma seleção 2023, que apresentamos na nossa página de instagram)
Os diálogos entre avó e neto, mas sobretudo as respostas desconcertantes (e com um toque de humor) da avó, foram os motivos da escolha de A última Paragem, de Matt de la Peña e Christian Robinson. Dentro desta temática encontra-se ainda a obra Todos fazemos tudo, de Madalena Matoso, um livro "às fatias", exclusivamente composto por imagem, referido pelas "potencialidades de reflexão e conversa que pode gerar, sobretudo no que às questões de género diz respeito".
Alguns dos títulos que os estudantes consideraram abordar temas difíceis

Os temas difíceis, ou fraturantes, encontram-se igualmente, de forma expressiva, entre as recomendações LIJ para adultos. Nesta seleção encontramos textos que têm por base acontecimentos de cunho histórico, como O Autocarro de Rosa Parks, de Fabrizio Silei e Maurízio A. C. Quarelo (também falamos desta obra AQUI e AQUI), Capitão Rosalie, de Isabelle Arsenaut e Timotée de Fombelle, Com 3 novelos, o mundo dá muitas voltas, de Henriqueta Cristina e Yara Kono, que, à semelhança do recente 25 Mulheres, de Raquel Costa (2024), assenta em questões decorrentes do 25 de Abril, com especial ênfase nas representações da Mulher, "o livro apresenta um vasto leque de representações da mulher que é preciso fazer ouvir", referia uma aluna a propósito da obra. Trata-se, com efeito, de um livro que muito apreciamos, quer em termos de tema, quer de discurso, um livro que podemos incluir nos Abecedários ou Dicionários Literários.
Destas obras emergem temáticas como a guerra, a segregação racial, a morte, o bullying, a liberdade... mas também a esperança, como dizia uma estudante a propósito de O Mar Viu, de Tom Percival. A originalidade, ditada pela subtileza do humor presente em Orelhas de Borboleta, de Luísa Aguilar e André Neves, foi o motivo que ditou a recomendação deste popular álbum, presença assídua em várias edições do programa ELF, assim como Depois da Chuva, de Miguel Cerro, obra que chegou ao TOP+ pela abordagem que propõe ao preconceito, "um assunto muito atual", segundo este público.
Alguns dos "Livros Perguntadores" recomendados a adultos pelos estudantes da LEB

Livros especialmente indutores de reflexão, ou "Livros Perguntadores" dão forma a uma generosa fatia deste conjunto de recomendações. Algumas destas obras já adquiriram o estatuto de "clássicos" entre nós, tão frequente é a sua nomeação. É o caso de A árvore generosa, de Shell Silverstein, de que falamos num balanço anterior, ou de Frederico, de Leo Lionni, porque "precisamos de alimento para a alma", defendia uma das estudantes. 
A encabeçar esta temática estão O muro no meio do livro, de Jon Agee, que trouxe uma reflexão sobre "o bem e o mal", "o certo e o errado", e, sobretudo, "o hábito adulto de julgar pelas aparências", no dizer dos estudantes; O Destino de Fausto, de Oliver Jeffers, "poque nos ajuda a entender o nosso lugar no mundo e a valorizar o que temos", e Herberto, de Lara Hawthorne, pela identificação, e porque constitui
 "um convite a olhar para nós: o que posso entregar ao mundo e oferecer à sociedade?", como, generosamente, partilhou uma aluna, referindo-se aos efeitos que esta obra teve em si.
De Oliver Jeffers, entra ainda neste TOP a sua emblemática obra Aqui estamos nós, apontamentos para viver no planeta Terra, porque encerra uma valiosa reflexão sobre o Tempo e o que fazemos com ele, trazendo-nos a consciência de que pertencemos a algo maior, motivo que também esteve na origem da escolha de Não há dois iguais, de Javier Sobrino e Catarina Sobral. Tratam-se, com efeito, de dois excelentes livros sobre as representações da Diversidade e da Alteridade. 
Chocolata, de Marisa Nuñez e Helga Bansch, e Ainda Nada, de Christhian Voltz, voltam a entrar nesta lista, pela reflexão que propõem sobre nós mesmos, "a busca incessante pelo que não temos, e a impaciência perante as coisas da vida, até descobrirmos que afinal estava tudo tão perto", reflexão que também emerge de Onde está a felicidade, de Álvaro Magalhães, outro dos "clássicos" nestas recomendações.
(A obra Ainda Nada integrou o primeiro corpus Lê para mim que depois eu Conto..., projeto que marca o arranque do nosso percurso na promoção da leitura em família).
Especialmente reservado à importância do Sonho está o livro O voo do golfinho, de Ondjaki e Danuta Wojciechowska, uma obra que questiona "a obrigatoriedade de nos encaixarmos num modelo de sociedade com o qual não nos identificamos" e que "conversa com Frederico".


Alguns dos álbuns poéticos que integram as recomendações do público estudantil 

Particularmente surpreendente foi o número de álbuns poéticos referidos pelos estudantes. A descoberta do Haiku, de Matsuo Bachô, em O Eremita Viajante, foi uma autêntica revelação que despoletou uma espécie de "corrida ao haiku" e a outros poemas breves. Autores como João Pedro Messéder, com Coisas que gostam de coisas ou Canções do ar e das coisas altas, obras ilustradas por Rachel Caiano, ou João Manuel Ribeiro, com Burburinhos ou o Beijo dos Relâmpagos à Montanha, encontram-se entre as preferências poéticas deste público estudantil. "São poemas que nos interrogam, que nos obrigam a pensar no porquê; que nos ajudam a ver para além do óbvio, que apresentam um olhar diferente sobre a poesia", referiram alguns dos estudantes que elegeram o álbum poético para recomendar aos adultos, reconhecendo que haviam feitos "as pazes com a poesia".
A liberdade, tema forte do ano, esteve na origem da escolha do recente trabalho A canção do Pássaro Toc, uma coletânea de Fran Pintadera e Anna Font (2024), com destaque para o texto De que é feita uma gaiola, "poema anticonformista", de acordo com a aluna que o escolheu. 
Partilhamo-lo, aqui, em jeito de miminho de encerramento:

De que é feita uma gaiola?
Não importa o material
com que seja fabricada:
uma gaiola é sempre feita de medos.
E quando se prende um pássaro
com ferro,
vime ou madeira,
talvez o que se esteja a prender
seja o medo de voar.
(Pintadera e Font, 2024)

Apenas um apontamento final para os Clássicos da LIJ. O Principezinho, de Antoine de Saint Éxupery, foi a escolha de um aluno que referiu ter redescoberto este texto que havia lido na adolescência, mas que não tinha tido o mesmo efeito em si (este é um dos efeitos dos clássicos, vai-se revelando a cada nova leitura), e A rapariguinha dos fósforos, o incontornável conto de Hans Christian Andersen, que não deixa ninguém indiferente. Inesperado foi o motivo que a aluna que recomendou este texto apresentou "trata-se de um conto que mexeria com muitos adultos que passaram dificuldades na infância, como aconteceu na minha família". 
De facto, nunca sabemos qual é a "cordinha" que a obra vai tocar...


Durante um ano letivo, passam alguma centenas de obras da LIJ pelas mãos dos estudantes da LEB, futuros educadores e professores, mas também futuros (e às vezes atuais) pais, tios, padrinhos e madrinhas. Mediadores de Leitura, portanto.
Apostar no apetrechamento da enciclopédia literária destes estudantes é investir na construção de um mundo melhor. Partilhamos da opinião da aluna que referia que o mundo poderia ser melhor se os adultos lessem mais literatura infantil. Os livros têm um papel importante na descoberta do nosso caminho, daquilo que podemos entregar ao mundo, como referia outra aluna.
Ninguém ama o que não conhece. Ninguém dá o que não tem. Dar a conhecer é missão da escola, pois se a escola não o fizer, ninguém o fará.
Ainda que um ano não permita um aprofundamento das muitas questões em torno da LIJ, acreditamos que tenha permitido deixar algumas sementes. Aqueles que conseguimos seduzir, serão professores diferentes.
Obrigada por mais um ano a crescer convosco!
Seguimos acreditando na bondade dos livros e no poder transformador da leitura literária.
Até já!

quinta-feira, 21 de março de 2024

(Re)pensar a Leitura em Família a partir da Biblioteca Escolar - publicação CNE

"Que a leitura traz benefícios ao nível do enriquecimento lexical e da correção ortográfica, que, por sua vez, se traduzem num melhor desempenho escolar, é uma ideia globalmente aceite. E se, afinal, esses forem só os efeitos secundários da leitura? E se a leitura puder também contribuir, não apenas para o sucesso e exercício da cidadania, mas também para o bem-estar e felicidade das crianças, das suas famílias e até das nossas escolas? Nos nossos dias, a escola em geral, e a biblioteca escolar, em particular, oferecem o contexto e as condições ideais para conhecer, experimentar e viver os benefícios da leitura. É, todavia, necessário, conhecer e deixar-se seduzir. Apostar na formação dos principais mediadores de leitura, pais e professores, poderá ser a peça em falta entre o investimento tutelar e os desejados resultados no que respeita aos hábitos de leitura dos jovens portugueses. No agrupamento de Escolas António Feijó (Ponte de Lima), a leitura em família faz parte da sua identidade." (Barros & Gandra, 2023) 

É à luz desta questão que apresentamos o percurso das Bibliotecas António Feijó no artigo (Re)pensar a Leitura em Família a partir da Biblioteca Escolar, da autoria de Lúcia Barros, coordenadora da Biblioteca Escolar A. Feijó e de Carla Gandra, Coordenadora Interconcelhia RBE, no primeiro número da DICA - Divulgar, Inovar, Colaborar, Aprender, uma publicação do Conselho Nacional de Educação "cujo principal propósito é contribuir para que o trabalho das escolas/agrupamentos e de todos os seus profissionais seja mais conhecido por parte das comunidades escolares e da sociedade em geral".

Artigo completo:

 (Re)pensar a Leitura em Família a partir da Biblioteca Escolar

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Os avós das histórias (e das memórias)

Comemoramos hoje o Dia dos Avós, uma data à qual não poderíamos ficar indiferentes, tendo em conta o número crescente de (boas) publicações literárias destinadas à infância, onde os avós marcam presença.

Há um ano, neste dia, apresentávamos uma seleção intitulada Que avós povoam a atual literatura para a infância?, e descobríamos diferentes facetas destes entes tão queridos.

Desta vez, a nossa escolha recaiu sobre um conjunto de textos que enfatizam o papel dos avós na sua qualidade de guardiões da memória, e a importância de construir (e preservar) memórias, a melhor forma de perpetuar a sua presença (para sempre).


João Pedro Mésseder, na sua coletânea de poesia Versos quase Matemáticos apresenta-nos um pequeno poema, Avô e Avó, composto por duas quadras apenas, que bem poderia servir de mote para esta questão das histórias e das memórias...

Capa e pormenor do miolo da obra Versos quase matemáticos de João Pedro Mésseder e Catarina Fernandes

O reduzido texto verbal é, todavia, "compensado" pela interessante ilustração que o acompanha (imagem acima), e que, já agora, nos põe a pensar no título do livro... Ou, como explicamos esta sombra? 

Pormenor do miolo da obra Amores de Família, de Carla Maia de Almeida e Marta Monteiro

Na obra da dupla nacional Carla Maia de Almeida e Marta Monteiro, Amores de Família (de que já falamos AQUI e AQUI), moram a Avó Ceres e o Avô Júpiter (imagem acima). Dois avós que não deixam por mãos alheias a tarefa de ensinar aos netos aquelas coisas importantes, mas demoradas, que é importante aprender (quer seja para experimentar fazer coisas que levam tempo, quer seja para que um dia também possam ser ensinadas a outros netos), como "fazer compotas e conservas de frutas", "construir casinhas de madeira para os pássaros", "esperar que as sementes germinem", e aguardar pelo Natal (que devolve os filhos ao lar).

(Nota: nesta obra ainda podemos encontrar a Avó Proserpina, muitos pais, muitas mães, e um interessante ABC dos deuses que "explicará" o comportamento das  famílias que aqui moram...)

Pormenores das páginas de introdução a cada um dos textos, e última página da obra Pelo rio correm histórias, de Maria da Conceição Vicente e Rui Castro

Maria da Conceição Vicente dá vida a três histórias do património popular de Águeda, que se ligam entre si pela voz de um avô que as conta ao seu neto, uma opção reveladora da consciência da importância dos avós na transmissão dos diferentes legados, neste caso o legado cultural e etnográfico da terra.

Pelo rio correm histórias é um livro muito bonito, onde as ilustrações de Rui Castro desempenham um papel de aproximação ao pequeno leitor, uma espécie de convite a jogar (é impossível não virem à nossa mente imagens de peças de lego, ou do vídeojogo Minecratf). 

Afinal, a brincar também podemos contar histórias e apropriarmo-nos desta herança comum que é o imaginário popular.

Capa e pormenores do miolo de O Anjo da Guarda do Avô

Da incontornável autora de Quando a mãe grita, Jutta Bauer, o livro O Anjo da Guarda do Avô conta a história das visitas que o neto, narrador, fez ao avô no hospital, nos seus últimos dias. Começa assim:

"O meu avô gostava de contar histórias. Contava sempre alguma coisa quando eu ia visitá-lo. - «...meu rapaz, ninguém me segurava...»"

E assim começa uma viagem pela vida do avô, desde a infância, passando pela juventude e vida adulta, até à velhice. Uma vida preenchida com coisas boas e menos boas, onde convivem a traquinice e as zangas, o amor e a guerra, a alegria e a fome... entre outras dicotomias (na imagem acima podemos ver dois exemplos)..

Nesta obra, à semelhança do que acontece noutros (bons) trabalhos onde o diálogo texto verbal e texto icónico é particularmente bem conseguido, a ilustração desempenha um papel muito enriquecedor no que à ampliação de sentidos diz respeito. Atente-se, por exemplo, na presença do "Anjo da Guarda do Avô" que o acompanha desde a infância até à morte (que também se encontra apenas subentendida, pela presença de um "novo anjo" que passa a proteger o neto). 

A simplicidade do texto e a delicadeza das ilustrações fazem desta obra um trabalho extraordinário, altamente indutor de reflexão (e de conversa) em torno de questões que se afiguram, muitas vezes, difíceis.

Pormenor do miolo de Se o mundo inteiro fosse feito de memórias, de Joseph Coelho e Allison Colpoys 

Editado em Portugal em fevereiro de 2021, Se o mundo inteiro fosse feito de memórias, de Joseph Coelho e Allison Colpoys, é um dos mais recentes trabalhos literários onde figura a representação dos avós.

Pela voz da neta, a criança narradora, somos convidados a dar um passeio pelas quatro estações do ano, revisitando as memórias que a menina guarda do seu avô em cada estação. 

"se o mundo inteiro fosse a primavera, eu plantaria d novo os aniversários do meu avô, para que ele jamais envelhecesse"

Acompanhámo-la no momento da dor da perda do avô ("algumas histórias são silenciosas") e apoiámo-la na construção do seu caleidoscópio de memórias, pois o avô preparou-lhe um último presente...

"No cadeirão do meu avô está um caderno novo. O papel é de pétalas de primavera, cosido com fio vermelho-rubi. Tem o meu nome na capa. Está novinho e por estrear, e foi feito pelo meu avô."

Pormenor do miolo A última paragem, de Matt de la Peña e Christian Robinson

Como o próprio título indicia, A última paragem, de Matt de la Peña e Christian Robinson, concentra grande parte da sua ação no autocarro que Alex e a Avó apanham à saída da igreja até à Rua do Mercado (a última paragem):

Poderíamos concentrar-nos no destino e na missão que a avó levava, mas isso equivaleria a perdermos a viagem... uma viagem aparentemente simples, mas onde Alex, ajudado pelos sábios gestos da avó, irá descobrir beleza em lugares  inesperados... e aprender a alegria da generosidade.

"Quando saiu do autocarros, Alex olhou em volta. Passeios esburacados e portas partidas, janelas cheias de grafitis e portas fechadas. Deu a mão à avó.

- Porque é que esta zona está sempre tão suja?

Ela sorriu e apontou para o céu.

- Por vezes, quando estás rodeado de lixo, consegues ver melhor as coisas belas, Alex."

O humor que permeia o texto, a profundidade da mensagem e a beleza das ilustrações fazem deste livro um verdadeiro tesouro. Não terá sido, pois, por acaso que foi a obra vencedora da medalha Newbery e livro de honra Caldecot.


Desejamos a todos os nossos leitores, grandes e pequenos, avós e netos, pais e filhos, excelentes leituras em família, e um MUITO FELIZ DIA DOS AVÓS!

P.S. Poderão encontrar outras sugestões sobre este tema AQUI e AQUI.

[LMB]

sábado, 24 de julho de 2021

As crianças que moram nos livros (1)

Na literatura de potencial receção leitora infantil encontramos, vastas vezes, a criança como protagonista, ora como narrador personagem, ora como personagem principal... 

Num ano particularmente dedicado à criança, pelas comemorações em torno do Ano Internacional para a eliminação do Trabalho Infantil, fomos em busca de (mais) crianças que moram nos livros (pois já AQUI havíamos falado sobre as Representações da Infância na Literatura).


Selecionamos para este mês, que conta já com muitas famílias de férias, quatro títulos de autoria internacional, chegados até nós bem recentemente, entre 2020 e 2021, pelas editoras Fábula, Presença, Kalandraka e Orfeu Negro. Convidamos, então, os nossos leitores (grandes e pequenos) a conhecer Vera, Jaime, Rosalie, e uma outra criança, cujo nome não é revelado, que nos brinda com uma carta (de amor) maravilhosa!

capa e paratexto final de Se algum dia vieres à Terra, de Sophie Blackall

Sophie Blackall, cuja obra chegou ao nosso país em 2020, com Olá Farol (de que falamos aqui), volta a encantar os leitores portugueses com este maravilhoso trabalho, publicado em março deste ano pela Fábula: Se algum dia vieres à Terra
Como a própria autora nos conta, num interessante paratexto que podemos encontrar na última página da obra (ver imagem acima), 

"A Ideia deste livro surgiu no cume de uma montanha dos Himalaias, no Butão. Eu estava a trabalhar com a organização Save the Children e tinha escalado um caminho em ziguezague para visitar uma pequena escola com apenas duas salas e dez alunos." (...)

pormenor do miolo de Se algum dia vieres à Terra, de Sophie Blackall

Só a introdução a este texto "explicativo" já nos oferece uma interessante reflexão sobre a importância dos nossos gestos, independentemente do número de pessoas que por eles possam ser tocadas, pois, na verdade, deste "pequeno gesto" nasceu esta grande obra, que é, como dizíamos, uma maravilhosa carta de amor à nossa Casa. Uma carta que pode chegar a todos os habitantes que partilham este planeta:

"Nós, os seres humanos, definimo-nos através do sítio onde nascemos, onde vivemos, daquilo em que acreditamos, das roupas que vestimos e das línguas que falamos. Mas não existe uma pessoa «típica». Somos todos diferentes. No entanto, há algo que todos partilhamos - o planeta em que vivemos."

Ao longo de sete dezenas de belíssimas páginas, profusamente ilustradas, e pela voz (ou pela pena) da criança narradora, que escreve esta bela carta (de amor) destinada ao "Querido visitante do espaço sideral", somos convidados, numa espécie de visita guiada à Casa, a conhecer (ou a recordar?) a beleza do mundo, em todas as suas dimensões. 
Trata-se, sem dúvida, de uma das melhores obras para conhecer a Agenda 2030 e para pôr em prática a máxima "Conhecer para Amar".

pormenor do miolo de Se algum dia vieres à Terra, de Sophie Blackall

Num livro com um título algo intrigante mora Vera, a menina que protagoniza a obra de Marina Núñez e Avi Ofer, Caça-Olhares, um trabalho belíssimo, publicado pela kalandraka, em 2020.
Preocupada com o facto de ninguém olhar senão para um certo dispositivo que todos seguram na mão, em frente aos olhos, Vera decide ir à caça de olhares...

Capa, guardas e pormenores do miolo de Caça-Olhares, de Marina Núñez e Avi Ofer


Mas Vera não é bem sucedida na sua missão, pois, à exceção de uma ou outra criança, a quem consegue caçar um olhar cúmplice, os olhares dos adultos não se voltam para ela: nem fora de casa, nem na própria casa! (imagem acima).
"Se os adultos não observam nem contemplam as coisas maravilhosas que há no mundo, como poderei eu fazer com que olhem para mim?", questiona-se a menina, desiludida...

Até que um dia, Vera decide procurar ajuda junto da avó Guida, pois

"A avó tem sempre olhares para ela, mesmo que diga que já não vê lá muito bem. Escuta todas as histórias, mesmo que diga que já não ouve como dantes. E nunca tem pressa, nem mil e uma coisas para fazer."

Será Vera bem sucedida, desta vez?
 
pormenor do miolo de Caça-Olhares, de Marina Núñez e Avi Ofer


Peter Reynolds, autor da famosa obra O Ponto, dá-nos a conhecer Jaime, a criança que mora no livro O Menino que colecionava palavras, publicado em 2020, pela Presença. Uma obra que nos revela um especial poder: o poder transformador das palavras (como podemos ler na contracapa).

pormenor do miolo, capa e guarda final de O Menino que colecionava Palavras, de Peter Reynolds

Jaime tinha um gosto particular no que respeita a coleções. Não colecionava cromos, nem selos, nem moedas... e nem olhares (como Vera). Jaime colecionava PALAVRAS, que ouvia, que via, que lia. PALAVRAS breves e doces, palavras bonitas e palavras polissílabas, "que soavam como pequenas canções". Jaime encheu muitos cadernos com as suas coleções...
Mas um dia... "ao transportá-las... Jaime escorregou e as palavras voaram."
O que será que vai fazer este colecionador especial?...

pormenor do miolo de O Menino que colecionava Palavras, de Peter Reynolds

E, por último, trazemos Rosalie, uma menina muito especial que mora num pequeno grande livro, escrito por Timothée de Fombelle e ilustrado por Isabelle Arsenaut, Capitão Rosalie, que chegou até nós em 2020, pela Orfeu Negro.

A menina que mora neste livro, tal como Vera, também tem uma missão... mas bem diferente. 
"Tenho um segredo
Na escola, todos pensam que estou a sonhar
Mas eu sou um soldado em missão. Capitão Rosalie."

miolo de Capitão Rosalie, de Timothée de Fombelle e Isabelle Arsenaut 

Estamos em 1917. Rosalie, a narradora, é uma menina de cinco anos, que vive com a mãe porque o pai está na guerra.

"Não tenho qualquer memória para lá da guerra. Era muito pequenina antes de ela começar. E vejo bem que a minha mãe continua a ler ainda durante muito tempo, apesar de só haver uma única página escrita no envelope.”

Curiosa (e não convencida) sobre o conteúdo das cartas que a mãe lhe lê, Rosalie decide empreender a missão que a ajudará a descobrir a verdade por que tanto anseia.

"Olho de novo para o quadro. Pela primeira vez tudo se torna claro. Como se uma neblina se evaporasse subitamente das coisas. A minha missão está quase terminada. Não devo esperar mais.”

miolo de Capitão Rosalie, de Timothée de Fombelle e Isabelle Arsenaut 

Trata-se de um dos mais belos trabalhos que conhecemos dentro da temática bélica. Um texto forte, que não deixa nenhum leitor indiferente.

Entre palavras e olhares, desejamos a todos uns dias de descanso de muita cumplicidade (os livros dão uma ajuda).



A todos, boas leituras!

[LMB]

domingo, 31 de janeiro de 2021

Os Livros da Lua

A lua sempre exerceu um grande fascínio sobre os escritores em geral, e sobre os poetas em particular. Carregada de simbolismo, a lua marca presença num sem número de textos, do património popular à literatura mais erudita.  

De algum modo imbuídos pelo famoso luar de janeiro, fomos em busca da lua em algumas obras literárias destinadas especialmente à infância. E, tomando como mote o célebre provérbio, poderíamos atrever-nos a dizer que "Leituras de janeiro iluminam o ano inteiro". 

Convidamos os nossos leitores a percorrer um conjunto de oito obras, e a descobrir Os Livros da Lua (ou será a Lua dos Livros?)

Começamos pela poesia de João Pedro Mésseder, que dedica, no seu livrinho Canções do Ar e das coisas Altas, dois poemas à lua : "Lua" e "Lua quebrada". Decidimo-nos por partilhar o segundo.

"Lua quebrada

Dormindo
na noite sem nuvens
o lago é uma toalha de prata
onde a lua inteira se mira.

Mas se alguém
atira uma pedra
e a faz saltar nesse espelho
logo a lua se quebra."

(João Pedro Mésseder, 2018)

Este trabalho de João Pedro Mésseder, que conta com belíssimas ilustrações de Rachel Caiano, reúne um conjunto de 30 poemas, que, em nosso entender, bem poderia subintitular-se de achegas para elevar o espírito.


Ainda dentro do texto poético, não poderia faltar nesta seleção este maravilhoso trabalho de José Jorge Letria e André Letria, Versos para os pais lerem aos filhos em noites de luar, que é um genuino elogio à ternura, à descoberta, à imaginação, à palavra e à leitura.

"Com versos da cor da lua
és tão grande e pequenino
como esta página branca
em que leio o teu destino. (...)"

(José Jorge Letria, 2003)

É com estes versos que os autores abrem este delicioso álbum poético, composto por 27 pequenos textos e 27 grandes ilustrações, de onde espreitam muitos mundos, e para os quais são convocadas vozes diversas, incluindo as que habitam os mundos possíveis da literatura, como o Pinóquio ou a Alice.

"Cada palavra que aprendes
quando começas a ler
é o mundo a conversar
com quem o quer conhecer. (...)"

(José Jorge Letria, 2003)


Reeditada em 2020, pela Akiara books, chega-nos esta interessante obra assinada por Jordi Amenós e Albout Arrayás. Neste trabalho vemos revisitada a intrínseca necessidade que o ser humano tem de histórias, para explicar os diversos fenómenos do mundo e da vida. 
Pela mão da criança que protagoniza a narrativa, o leitor é convidado a percorrer as diferentes explicações que o círculo de amigos de Paulo lhe vai adiantando em relação à questão que dá título ao livro Onde está a lua? Um conjunto de explicações bem inusitadas!
E o mais curioso é o facto de, mesmo depois de explicado o mistério (pela professora), o Paulo e os colegas continuarem a preferir acreditar que "a lua era uma bola de futebol com sabor a baunilha, cheia de lâmpadas e muito, muito vaidosa."


A curiosidade em relação à lua, que inclui a vontade de lhe chegar e de a provar, marca presença em obras como Papá, por favor, apanha-me a Lua, do incontornável Eric Carle, e A que sabe a Lua? de Michael Grejniec. 
Ambos os trabalhos remetem para uma reflexão sobre a literatura enquanto lugar de concretização da utopia. 
No primeiro exemplo, o pai de Mónica, atendendo a um pedido da filha, vai buscar uma escada muito comprida, que encosta a uma montanha muito alta, para daí chegar à lua e trazê-la para Mónica brincar (mesmo tendo que esperar pelo tamanho certo da lua). Enriquecido com páginas que se desdobram, em diferentes direções, acompanhando o caminho do pai de Mónica para chegar à lua, este livro parece sugerir que a leitura extravasa o limite das próprias páginas.
No segundo exemplo, para além do princípio da entreajuda e do habitualmente subestimado valor dos mais fracos, recuperado de textos do património popular (como O Nabo Gigante ou O Coelhinho Branco), outras questões se levantam: atente-se, por exemplo, no facto de ser a tartaruga a tomar a iniciativa e a suportar o peso dos restantes animais; ou na participação ativa da lua que "entra no jogo" dos animais; ou ainda no olhar do peixe, que "tinha visto tudo sem entender nada"...


Movido pela curiosidade em relação ao sabor da lua, é também Xico, o rato que protagoniza a obra com o mesmo nome, um trabalho de Paula Carballeira e de Blanca Barrio. Tendo ouvido dizer que a lua era feita de queijo fresco, Xico, à boleia de uma nave espacial, chega à Lua... mas quando se decide a dar-lhe uma dentada, algo inesperado acontece, deixando o nosso Rato da Lua muito triste e com saudades da Terra, das montanhas, dos rios, das árvores e do vento, dos outros ratos e... até dos gatos! Ainda bem que a lua estava em quarto crescente, podendo assim embalar e consolar o Xico... 


E, se quem vai à lua fica com saudades da Terra, o contrário também pode acontecer: é o que nos conta Tomi Ungerer no trabalho que lhe valeu o prémio Hans Christian Andersen, em 1998, O Homem da Lua.
A história começa com o que poderíamos considerar mais uma resposta à tão popular e emblemática questão "o que se vê na lua?"

"Nas noites claras e estreladas, o Homem da Lua pode ser visto no espaço, encolhido no seu pequeno lugar cintilante."

O que o leitor talvez não espere é que o Homem da Lua tenha "inveja" das pessoas alegres que vê lá de cima, a dançar e a festejar. 
Um dia, à boleia de uma estrela cadente, o Homem da Lua chegou à Terra, não imaginando, porém, que iria provocar um tremendo alvoroço, só porque era um "misterioso visitante", ao qual decidiram chamar de "invasor". A estadia do Homem da Lua na Terra não foi, pois, nada do que ele havia imaginado (e visto lá de cima), e não fosse a sua natureza crescente e minguante, se calhar ainda hoje estaria atrás das grades, de onde se escapuliu, para grande espanto dos polícias. Depois de um conjunto de peripécias, contadas com o humor e a sátira tão característicos de Ungerer, o nosso herói consegue, enfim, regressar "a casa", onde o continuamos a ver em noites claras "encolhido no seu espaço cintilante."


A encerrar a nossa seleção de Livros da Lua, trazemos A Lua Ladra, uma obra com texto de Pablo Albo e com ilustrações do inconfundível Pierre Prat.
Se, por um lado, podemos considerar este trabalho um hino à imaginação, pela ampliação de possibilidades que oferece (talvez a Lua ainda não tenha entrado muitas vezes no rol de culpados do desparecimento das chupetas...), por outro lado parece encerrar uma subtil mensagem da criança para o adulto que teima em inventar "desculpas e mentiras" para responder a determinadas perguntas da criança.

"Um dia a minha chupeta desapareceu.
A mãe disse-me que a lua a tinha levado.
- Mentira! Como é que tu sabes? - perguntei-lhe eu.
- Porque ela não está a chorar - respondeu ela.
- Não, não é por isso."

A pequena narradora desta história bem sabe que não voltará a ter a sua chupeta, mas entra no jogo da lua (ou da mãe), para a tentar recuperar, decidindo (livremente), no final, que a lua precisa mais da chupeta do que ela.


Ficam, naturalmente, muitas obras de indiscutível valor fora desta seleção. Não cabem todas neste espaço. No entanto, é bem possível que voltemos à lua para folhear mais alguns dos seus livros.
Por agora, prometemos aos nossos leitores um divertido desafio. Acompanhem-nos, ao longo dos próximos dias, no nosso Facebook e no nosso Instagram, e participem no jogo "A que história pertenço?" Iremos partilhar alguns excertos destas oito obras, e pedir-vos que adivinhem a que livro pertencem. As pistas que aqui deixamos hoje podem ser uma preciosa ajuda...

Boas leituras e até já!

sábado, 7 de novembro de 2020

Bruxa que é bruxa faz bruxedos! Será?

Quer celebremos, ou não, o Halloween, a figura da bruxa acaba sempre por se fazer notar nas celebrações do meio do outono. Não podíamos, pois, perder esta oportunidade oferecida pelo contexto, para sugerir uma viagem pelo universo das bruxas, personagens incontornáveis na literatura para a infância (e não só!).
 

Seleção literária "histórias com bruxas dentro"


Quase sempre a representar o vilão, a bruxa desempenha um importante papel nas narrativas que integra. Se é verdade que nem sempre simpatizamos com elas, também é certo que sem os seus feitiços a história não teria o mesmo efeito. 


Três contos populares, "A Bela Adormecida", "Rapunzel" e "Hansel e Gretel", maravilhosamente ilustrados, onde a bruxa desempenha o papel de vilã.


Muito presente no conto popular (quem não se recorda da "velhinha" que mora na Casinha de Chocolate? Ou da bruxa que aprisionou Rapunzel? Ou daquela que garantiu que Bela Adormecida se picasse no fuso? Ou ainda da malvada madrasta de Branca de Neve?), a bruxa continua a marcar presença na atual produção literária para a infância, ora em novas edições do conto popular, ora em registos onde vai deixando cair a sua capa de vilã. 

Pormenores do início da narrativa de Hansel e Gretel

Os dez títulos que selecionamos integram bruxas para todos os gostos. Revisitamos Hansel e Gretel, dos irmãos Grimm, numa bonita edição com ilustrações de Elizabeth Zwerger, uma obra sem condescendências, com total respeito pelo texto dos Irmãos Grimm (imagem acima). 

De Carlos Nogueira e Patrícia Figueiredo, trazemos Os dois Irmãos e a Bruxa, um conto popular português onde ecoa a saga dos irmãos da Casinha de Chocolate (imagem abaixo), mas com "toques" bem portugueses, como este arranque da narrativa:

"Era uma vez uma mulher que tinha um filho e uma filha. Um dia, mandou o filho buscar cinco réis de tremoços, e depois disse aos dois:
- Vou para a floresta apanhar lenha. Se eu não voltar, sigam as cascas de tremoços que vou deitando pelo caminho até me encontrar."

Este belíssimo trabalho de Carlos Nogueira e Patrícia Figueiredo apresenta-nos um conto popular português com fortes ecos de Hansel e Gretel (ou a Casinha de Chocolate).

Fomos em busca da princesa que dormiu o mais longo sono da história dos contos, e descobrimo-la num belíssimo álbum pop-up: A Bela Adormecida. Um interessante trabalho, onde texto verbal e imagem tridimensional dialogam em perfeito equilíbrio, mantendo bem visíveis as dicotomias do conto: a fada e a bruxa, a bondade e a maldade, a alegria e a tristeza..., culminando numa clara vitória do bem sobre o mal com o incontornável "viveram felizes para sempre".

Pormenores da ilustração tridimensional do livro pop-up A Bela Adormecida

A cuidar dos seus rapúncios, fomos encontrar a bruxa que aprisionou Rapunzel, numa original edição da Oqo, da autoria de Iratxe López de Munáin, responsável pelo texto (que recupera dos Irmãos Grimm) e pelas ilustrações. Nesta obra destacamos a originalidade das ilustrações, que conferem um clima muito peculiar à narrativa, condizente com o estado de espírito que vai marcando o percurso das personagens, e, simultaneamente,  complementar em termos de informação enciclopédica: repare-se, por exemplo, nas guardas preenchidas com a flor que acaba por ditar o destino de Rapunzel: os rapúncios (imagem abaixo).

Pormenores da obra Rapunzel: dupla página do miolo, capa e guardas iniciais preenchidas com rapúncios.

Surpreendente e inusitada é a obra que nos chega da editora The Poets and Dragons Society,  Bruxa, Bruxa, vem à minha festa, de Arden Druce e Pat Ludlow, um álbum de dimensões generosas e recheio "assustador", onde cabe ao leitor decidir se a bruxa é, ou não, vilã. Este álbum convoca um conjunto de personagens que habitam o imaginário do pequeno leitor, como o gato, o dragão, o unicórnio, o duende, o pirata, o lobo, ou o capuchinho vermelho, que vão sendo convidados para a festa do narrador, por encadeamento, 

"Bruxa, Bruxa, por favor, vem à minha festa.
Obrigada. Irei sim, se convidares o gato."

"Gato, gato, por favor, vem à minha festa.
Obrigado. Irei sim, se convidares o ..."

culminando num inesperado final...

Pormenor da dupla página inicial e da capa de Bruxa, Bruxa, vem à minha festa.

A nossa viagem pelo universo das bruxas literárias levou-nos, inevitavelmente, a paragens onde esta personagem parece ter-se cansado da fama de vilã. É o que acontece, por exemplo,  em "As duas bruxas gémeas", um texto de Luísa Ducla Soares, com ilustrações de Célia Fernandes, que integra a obra Histórias com Números. Trata-se de uma narrativa bem disposta, onde assistimos ao célebre "virar do feitiço contra o feiticeiro". Começa com o anúncio do nascimento das duas bruxas:

"Querido marido, Feiticeiro do Diabo,

Tivemos hoje duas filhas. Uma é linda, cheia de sardas, com o nariz torto como um papagaio, cabelo espetado e duas verrugas enormes na cara. Vais ter orgulho nela. Vou chamar-lhe Lua Nova, por ser tão escurinha.
Mas a outra... parece defeituosa. Saiu loura, com dois grandes olhos azuis, e não tem sequer um sinal na pele. Que desgraça! Vou chamar-lhe Raio de Sol, porque é mesmo um raio de uma bruxa!
Quando puderes vem cá vê-las, e aproveita para trazeres um caldeirão novo, porque o nosso já está esburacado.
Que todas as maldições te acompanhem!
Bruxa Repuxa

Não estranhem o tom da carta, porque as bruxas não costumam ser muito simpáticas." (acrescenta a autora em jeito de lembrete).

Pormenor do miolo de "As duas Bruxas Gémeas" de Luísa Ducla Soares e Célia Fernandes, e capa da obra que integra o conto.

Já Henriqueta, a bruxinha que protagoniza Henriqueta e o bruxedo da lua, de Lurdes Breda e Manuela Rocha, tem como passatempo favorito fazer bruxarias (que é afinal o trabalho das bruxas), atormentando a vida dos que se cruzam com ela. E tudo corre bem para Henriqueta até ao dia em que decide fazer um bruxedo à Lua, e se vê, literalmente, a andar para trás. 
Trata-se de uma história ternurenta, à qual não faltam os ingredientes típicos de uma história com bruxas (aranhas, morcegos, corujas, caldeirões, poções...), com a particularidade de apresentar os cenários a preto e branco, convidando à cumplicidade do leitor para dar o tom e o toque final à narrativa. 

Capa e pormenor do miolo de Henriqueta e o bruxedo da lua: destaque para a possibilidade de o leitor colaborar na construção dos cenários.

E como bruxa que se preze tem um gato preto, não podíamos deixar de convidar Leonardo, o gato preto que vivia nas ruas e que ansiava encontrar uma bruxa que cuidasse de si. Mora na obra Desculpa... Por acaso és uma bruxa? de Emily Horn e Pawel Pawlak, e conquista qualquer leitor.
Leonardo costuma refugiar-se na biblioteca, pois é um lugar quentinho, e, um dia, ao folhear a enciclopédia das bruxas, descobre que todas as bruxas têm um gato preto, uma vassoura, um caldeirão e usam chapéus pontiagudos e meias às riscas. 
Decidido na sua missão de ser "adotado" por uma bruxa, enceta uma divertida viagem pelas ruas da cidade à procura de uma... será que a vai encontrar? Onde? A imagem abaixo dá-nos uma pista... 

Capa e pormenor do miolo de Desculpa... Por acaso és uma bruxa?

E quem disse que as bruxas não podem ser divertidas? António Mota, no seu célebre poema "Numa casa muito estranha", diz-nos que sim! Este texto, inicialmente publicado em Se tu visses o que eu vi, e recentemente incluído na coletânea Casa de Palavras, uma edição comemorativa dos 40 anos de vida literária do autor, com ilustrações de João Vaz de Carvalho e música de Daniel Completo, é garantia de sucesso e gargalhada junto dos mais novos. (Recordamos, a propósito, uma das vistas que o autor fez em março 2020 à EB da Feitosa):


Tendo como ingrediente principal o humor, e como condimento os jogos de palavras, onde o ritmo e a musicalidade marcam forte presença, este texto apresenta-se ainda como pretexto para refletir e desconstruir alguns dos principais estereótipos veiculados pelo conto popular.

Capa e dupla página correspondente ao texto "Numa casa muito estranha"

 
A encerrar a nossa seleção de livros com bruxas dentro, propomos a leitura de A casa com patas de galinha, um livro de Sophie Anderson, que recupera e reatualiza a figura de Baba Yaga. São 282 páginas de convívio com personagens que oscilam entre o mundo dos vivos e o dos mortos, de reflexão sobre o lugar e a missão de cada um, num registo bastante emotivo: para degustar em família.

"O meu destino não está traçado, e é assim que gosto dele. As possibilidades são tão infindáveis quanto as estrelas. Enchem o mundo dos vivos e o mundo Yaga e até cintilam nas festas para os mortos." (Sophie Anderson)

Capa e contra capa de A Casa com Patas de Galinha.


Desejamos que a magia da leitura conquiste todas as famílias. 
Deixemo-nos, pois, enfeitiçar!