sábado, 22 de junho de 2024

O mundo seria melhor se os adultos lessem mais literatura infantil

O título deste texto é um excerto do testemunho de uma aluna de Licenciatura em Educação Básica (LEB) na aula de balanço da UC de Literatura infantojuvenil.

É sempre deste modo que encerramos o ano letivo. Os estudantes são convidados a responder a duas questões: o que levam da UC, e que livro de literatura infantil recomendariam a um adulto.

A leitura gratuita, o conhecimento de livros, em quantidade e diversidade, e as estratégias de abordagem à obra literária encontram-se entre os aspetos mais valorizados na UC.  No top+ das recomendações de livros LIJ aos adultos estão as representações dos avós, os temas fraturantes, os "livros perguntadores" e os álbuns poéticos.

Algumas das obras mais recomendadas pelos estudantes da LEB

Alguns estudantes referiram um antes e um depois desta UC, pelos horizontes que se abriram ao longo do ano, no que diz respeito ao livro e à leitura. Houve alunos que começaram a ler, e outros que retomaram o hábito. A frequência de bibliotecas tornou-se assídua para alguns, e as secções do livro infantil, em livrarias e grandes superfícies, passaram a ser de visita obrigatória. Houve estudantes que começaram a construir a sua própria biblioteca, e outros que começaram a oferecer livros aos familiares e amigos. 

É incontornável a questão do mundo novo que se abre a partir da LIJ.

"Um novo olhar sobre a Literatura Infantil", reflexão retomada muitas vezes neste balanço, que envolveu cerca de 70 alunos, encontra-se espelhado nos 36 títulos da LIJ, referidos como sugestões de leitura para adultos. Vamos falar um bocadinho desta seleção literária, e conhecer os livros e os motivos que estiveram na base destas recomendações. 

As representações dos avós são um dos temas de eleição deste público

Ao podium chegaram, em primeiro lugar, O Rosto da Avó, de Simona Ciraolo, As mãos do meu pai, de Deok Kiu Choi, e Se o mundo inteiro fosse feito de memórias, de Joseph Coelho, ex aequo.
"Este livro é um lembrete para criar mais rugas, que é como quem diz, viver mais", referia uma aluna a propósito de O Rosto da Avó, uma obra considerada um hino à memória, um acordar de histórias de vida, um espaço de nostalgia... (falamos desta obra AQUI).
Na verdade, a quantidade de títulos onde os avós são a figura central, evocados pelos estudantes, são reveladores da importância que têm nas suas vidas. Alguns alunos "encontraram-se" no livro, percebendo que "não estavam sós", como aconteceu com O avô tem uma borracha na cabeça, de Rui Zink e Paula Delecave,  ou com Maria Nêsperade Patrícia Martins e Joana Miguel, uma obra que é um hino à Terra, à Mulher, à Vida, às Sementes, à Ternura e ao Legado Feminino que pode passar de geração em geração; um livro onde a Saudade e a Esperança andam de mãos dadas.
"As nossas raízes e as memórias de infância estão sempre connosco", referiram alguns alunos a propósito destes títulos, e de outros como Jerónimo e Josefa, de José Saramago e João Fazenda ou a  A Manta do José, de Miguel Gouveia e Raquel Catalina, obra que também traz uma reflexão sobre "a valorização emocional das coisas", nas palavras de uma das estudantes (também falamos deste livro AQUI).
As mãos do meu Pai, um livro quase sem palavras, "atípico" como se lhe referiu uma aluna, teve na origem das recomendações motivos bem diferentes entre si. Quer junto de filhos de pais separados, onde a figura paterna se encontra pouco presente, quer junto de filhos com estreita ligação ao pai, quer pela reflexão em torno do envelhecimento e do caráter cíclico da vida, esta obra teve um forte impacto junto dos estudantes: 
Foi a propósito deste livro que foi apresentado o testemunho que dá título a este texto "o mundo seria melhor se os adultos lessem mais literatura infantil, lessem este livro." 
(esta obra fez parte da nosso "31 de livros", uma seleção 2023, que apresentamos na nossa página de instagram)
Os diálogos entre avó e neto, mas sobretudo as respostas desconcertantes (e com um toque de humor) da avó, foram os motivos da escolha de A última Paragem, de Matt de la Peña e Christian Robinson. Dentro desta temática encontra-se ainda a obra Todos fazemos tudo, de Madalena Matoso, um livro "às fatias", exclusivamente composto por imagem, referido pelas "potencialidades de reflexão e conversa que pode gerar, sobretudo no que às questões de género diz respeito".
Alguns dos títulos que os estudantes consideraram abordar temas difíceis

Os temas difíceis, ou fraturantes, encontram-se igualmente, de forma expressiva, entre as recomendações LIJ para adultos. Nesta seleção encontramos textos que têm por base acontecimentos de cunho histórico, como O Autocarro de Rosa Parks, de Fabrizio Silei e Maurízio A. C. Quarelo (também falamos desta obra AQUI e AQUI), Capitão Rosalie, de Isabelle Arsenaut e Timotée de Fombelle, Com 3 novelos, o mundo dá muitas voltas, de Henriqueta Cristina e Yara Kono, que, à semelhança do recente 25 Mulheres, de Raquel Costa (2024), assenta em questões decorrentes do 25 de Abril, com especial ênfase nas representações da Mulher, "o livro apresenta um vasto leque de representações da mulher que é preciso fazer ouvir", referia uma aluna a propósito da obra. Trata-se, com efeito, de um livro que muito apreciamos, quer em termos de tema, quer de discurso, um livro que podemos incluir nos Abecedários ou Dicionários Literários.
Destas obras emergem temáticas como a guerra, a segregação racial, a morte, o bullying, a liberdade... mas também a esperança, como dizia uma estudante a propósito de O Mar Viu, de Tom Percival. A originalidade, ditada pela subtileza do humor presente em Orelhas de Borboleta, de Luísa Aguilar e André Neves, foi o motivo que ditou a recomendação deste popular álbum, presença assídua em várias edições do programa ELF, assim como Depois da Chuva, de Miguel Cerro, obra que chegou ao TOP+ pela abordagem que propõe ao preconceito, "um assunto muito atual", segundo este público.
Alguns dos "Livros Perguntadores" recomendados a adultos pelos estudantes da LEB

Livros especialmente indutores de reflexão, ou "Livros Perguntadores" dão forma a uma generosa fatia deste conjunto de recomendações. Algumas destas obras já adquiriram o estatuto de "clássicos" entre nós, tão frequente é a sua nomeação. É o caso de A árvore generosa, de Shell Silverstein, de que falamos num balanço anterior, ou de Frederico, de Leo Lionni, porque "precisamos de alimento para a alma", defendia uma das estudantes. 
A encabeçar esta temática estão O muro no meio do livro, de Jon Agee, que trouxe uma reflexão sobre "o bem e o mal", "o certo e o errado", e, sobretudo, "o hábito adulto de julgar pelas aparências", no dizer dos estudantes; O Destino de Fausto, de Oliver Jeffers, "poque nos ajuda a entender o nosso lugar no mundo e a valorizar o que temos", e Herberto, de Lara Hawthorne, pela identificação, e porque constitui
 "um convite a olhar para nós: o que posso entregar ao mundo e oferecer à sociedade?", como, generosamente, partilhou uma aluna, referindo-se aos efeitos que esta obra teve em si.
De Oliver Jeffers, entra ainda neste TOP a sua emblemática obra Aqui estamos nós, apontamentos para viver no planeta Terra, porque encerra uma valiosa reflexão sobre o Tempo e o que fazemos com ele, trazendo-nos a consciência de que pertencemos a algo maior, motivo que também esteve na origem da escolha de Não há dois iguais, de Javier Sobrino e Catarina Sobral. Tratam-se, com efeito, de dois excelentes livros sobre as representações da Diversidade e da Alteridade. 
Chocolata, de Marisa Nuñez e Helga Bansch, e Ainda Nada, de Christhian Voltz, voltam a entrar nesta lista, pela reflexão que propõem sobre nós mesmos, "a busca incessante pelo que não temos, e a impaciência perante as coisas da vida, até descobrirmos que afinal estava tudo tão perto", reflexão que também emerge de Onde está a felicidade, de Álvaro Magalhães, outro dos "clássicos" nestas recomendações.
(A obra Ainda Nada integrou o primeiro corpus Lê para mim que depois eu Conto..., projeto que marca o arranque do nosso percurso na promoção da leitura em família).
Especialmente reservado à importância do Sonho está o livro O voo do golfinho, de Ondjaki e Danuta Wojciechowska, uma obra que questiona "a obrigatoriedade de nos encaixarmos num modelo de sociedade com o qual não nos identificamos" e que "conversa com Frederico".


Alguns dos álbuns poéticos que integram as recomendações do público estudantil 

Particularmente surpreendente foi o número de álbuns poéticos referidos pelos estudantes. A descoberta do Haiku, de Matsuo Bachô, em O Eremita Viajante, foi uma autêntica revelação que despoletou uma espécie de "corrida ao haiku" e a outros poemas breves. Autores como João Pedro Messéder, com Coisas que gostam de coisas ou Canções do ar e das coisas altas, obras ilustradas por Rachel Caiano, ou João Manuel Ribeiro, com Burburinhos ou o Beijo dos Relâmpagos à Montanha, encontram-se entre as preferências poéticas deste público estudantil. "São poemas que nos interrogam, que nos obrigam a pensar no porquê; que nos ajudam a ver para além do óbvio, que apresentam um olhar diferente sobre a poesia", referiram alguns dos estudantes que elegeram o álbum poético para recomendar aos adultos, reconhecendo que haviam feitos "as pazes com a poesia".
A liberdade, tema forte do ano, esteve na origem da escolha do recente trabalho A canção do Pássaro Toc, uma coletânea de Fran Pintadera e Anna Font (2024), com destaque para o texto De que é feita uma gaiola, "poema anticonformista", de acordo com a aluna que o escolheu. 
Partilhamo-lo, aqui, em jeito de miminho de encerramento:

De que é feita uma gaiola?
Não importa o material
com que seja fabricada:
uma gaiola é sempre feita de medos.
E quando se prende um pássaro
com ferro,
vime ou madeira,
talvez o que se esteja a prender
seja o medo de voar.
(Pintadera e Font, 2024)

Apenas um apontamento final para os Clássicos da LIJ. O Principezinho, de Antoine de Saint Éxupery, foi a escolha de um aluno que referiu ter redescoberto este texto que havia lido na adolescência, mas que não tinha tido o mesmo efeito em si (este é um dos efeitos dos clássicos, vai-se revelando a cada nova leitura), e A rapariguinha dos fósforos, o incontornável conto de Hans Christian Andersen, que não deixa ninguém indiferente. Inesperado foi o motivo que a aluna que recomendou este texto apresentou "trata-se de um conto que mexeria com muitos adultos que passaram dificuldades na infância, como aconteceu na minha família". 
De facto, nunca sabemos qual é a "cordinha" que a obra vai tocar...


Durante um ano letivo, passam alguma centenas de obras da LIJ pelas mãos dos estudantes da LEB, futuros educadores e professores, mas também futuros (e às vezes atuais) pais, tios, padrinhos e madrinhas. Mediadores de Leitura, portanto.
Apostar no apetrechamento da enciclopédia literária destes estudantes é investir na construção de um mundo melhor. Partilhamos da opinião da aluna que referia que o mundo poderia ser melhor se os adultos lessem mais literatura infantil. Os livros têm um papel importante na descoberta do nosso caminho, daquilo que podemos entregar ao mundo, como referia outra aluna.
Ninguém ama o que não conhece. Ninguém dá o que não tem. Dar a conhecer é missão da escola, pois se a escola não o fizer, ninguém o fará.
Ainda que um ano não permita um aprofundamento das muitas questões em torno da LIJ, acreditamos que tenha permitido deixar algumas sementes. Aqueles que conseguimos seduzir, serão professores diferentes.
Obrigada por mais um ano a crescer convosco!
Seguimos acreditando na bondade dos livros e no poder transformador da leitura literária.
Até já!

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