segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Abecedários Literários - receita de sucesso

Ao longo dos últimos dias, e como prometemos AQUI, apresentamos nas nossas páginas de Instagram e de Facebook, um conjunto de sugestões de leituras para integrar a biblioteca da criança que vai agora para o 1º ciclo (Vou para a escola: vou aprender a ler!). 

No seguimento dessas propostas, e porque a escola já começou, hoje trazemos uma seleção de abecedários literários


Esta tipologia de obra para a infância (e não só) torna-se particularmente atrativa na fase da aprendizagem formal da leitura, que corresponde à entrada para o 1º ano do 1º ciclo (6-7 anos). Efetivamente, porque a criança enceta um contacto mais próximo com as letras do alfabeto, explorando os sons, as composições silábicas e as palavras onde "moram" as letras, o olhar sobre o abecedário torna-se particularmente apurado.

Guardas iniciais e finais de O Alfabeto dos Bichos de José Jorge Letria e André Letria.
Este modelo repete-se em todos os livros desta coleção do autor.

Os dicionários e alfabetos (literários), cuja origem remonta ao séc. XIX, apareceram inicialmente associados a funções didáticas. Hoje, incorporam um conjunto diversificado de recursos literários e estéticos, e são uma tendência crescente na edição literária para a infância. Estas obras refletem, de algum modo, uma maior liberdade artística, e às vezes um cunho experimental, encerrando um elevado potencial no que à fruição estética diz respeito, e prestando-se a um sem número de atividades lúdicas e divertidas na escola ou na família. 


O Alfabeto dos Bichos, o primeiro de uma coleção de José Jorge Letria, da qual fazem parte O Alfabeto dos Países (de que falamos AQUI e AQUI), O Alfabeto da Natureza e O Alfabeto do Corpo Humano, é composto por 23 poemas, sobre 23 animais, ordenados alfabeticamente. Os textos refletem a mestria do autor em conjugar informação de índole diversa com subtis notas de humor, numa linguagem de poesia vestida. Uma das estratégias possíveis para ler esta obra poderá ser partindo da letra inicial do nome da criança e alargar aos nomes da família, dos amigos... a que ficarão associados os animais correspondentes. Vejamos o que calharia ao Luís, ao Leonardo, ao Lourenço, à Liliana, à Luísa e à Lúcia:

"Leopardo

Podia chamar-se Leonardo

este felino elegante

que na copa de uma árvore

parece um bicho distante;

nem esculpido em madeira

teria maior perfeição, arco de corda esticada

correndo ao sol do verão.

A pelagem pintalgada

lembra doença infantil,

não é sarampo ou varicela

nem um vírus feio e hostil." 

(Letria & Letria, in O Alfabeto dos Bichos)

Nesta obra é ainda visível a preocupação de enriquecer o "repertório animal" do pequeno leitor, com a inclusão de animais menos conhecidos, como é o caso do Quivi (imagem abaixo).

Excerto de O Alfabeto dos Bichos

Num registo marcado pela ludicidade, Luísa Ducla Soares brinca com as letras do alfabeto na sua emblemática obra Abecedário Maluco, um trabalho várias vezes reeditado, tal é o seu sucesso.

O abecedário maluco: a última edição (2019), com ilustrações de Maria Neradova, e edição de 2004, com ilustrações de Joana Quental

Nesta obra, da autora que comemora 50 anos de vida literária, encontramos o "abecedário maluco de nomes", a abrir a coletânea, e o "abecedário maluco de apelidos", a encerrar. O recheio é bem variado: entre os vários poemas que compõem a obra, encontramos títulos tão inusitados como "Viva o desmazelo!", "Tudo de pernas para o ar", "As palavras também fazem partidas", "Volta a Portugal... na asneira", "O menino Perguntador", e vários outros. Um trabalho que permite aprofundar a consciência fonológica, e, simultaneamente, alargar e apetrechar as várias enciclopédias do leitor em construção.

Excerto do poema que encerra a obra: "Abecedário maluco de apelidos"

No ano em que comemoramos o centenário do nascimento de Mário Castrim, merece um apontamento a sua obra Estas são as Letras, um original trabalho, que, seguindo a ordem alfabética, reúne 23 textos, escritos em diferentes  discursos e "formatos" e habitados por palavras conhecidas e desconhecidas. Sob a forma de poesia, poesia visual, texto dramático... o autor faz desta obra um verdadeiro laboratório linguístico e um hino à imaginação. Vejamos o texto dedicado à letra A:

"Isto é um arame de água ou um sonho de margem

Isto é a sombra de uma trave quase ao princípio da tarde

Isto é o voo de ave ao encontro doutra ave

acerta

aperta

aparafusa

Agora eu vim do princípio da água e do fim da Terra

sobre estes meus pezinhos leves

ando no mundo como tu me escreves"

(Mario Castrim e José Miguel Ribeiro in Estas são as Letras)

Ou, as páginas onde moram o Q e o R (imagem abaixo).

Excerto de Estas são as Letras, de Mário Castrim e José M. Ribeiro

João Pedro Mésseder e Marta Madureira decidem vestir as letras com números dando origem a este interessante trabalho: As Letras de Números Vestidas. Trata-se de mais uma viagem pelo nosso alfabeto, com paragens em todas as letras, onde pequenos textos incorporam nomes próprios (que indiciam a infância) e números. O recurso à rima torna a leitura muito apetecível para o pequeno leitor, fazendo com que o "ensinamento" implícito da ordem numérica associada ao alfabeto, passe quase despercebido enquanto tal: 

Excerto de As Letras de Números Vestidas de J. P. Mésseder e M. Madureira.


Os alfabetos literários são, como referimos, obras que permitem uma grande liberdade artística e estética. Por cá, talvez pelo facto de ter integrado todas as edições do Programa ELF, temos um carinho especial pelo Dicionário das Palavras Sonhadoras, de António Mota e Sebastião Peixoto.

Excerto de O Dicionário das Palavras Sonhadoras de A. Mota e S. Peixoto

Este belíssimo livro, que abre com um texto narrativo onde o leitor fica a conhecer a origem de um dicionário tão especial, integra uma lindíssima coleção de "metáforas", prestando-se a leituras múltiplas e também a atividades "ao jeito de...". Na verdade, as potencialidade deste dicionário já foram tão testadas pelas famílias que connosco têm trabalhado, que a garantia de sucesso é TOTAL. Falamos desta obra AQUI, AQUI, e AQUI.

 
Excerto de O Dicionário das Palavras Sonhadoras de A. Mota e S. Peixoto

A partir deste dicionário, que integra as 26 letras do atual alfabeto português, é possível construir um sem número de dicionários temáticos, por exemplo de acordo com os gostos e interesses dos leitores (grandes e pequenos). Pelo programa ELF já se passearam dicionários da família, dicionários divertidos, dicionário das profissões, dicionários do Natal, dicionários das estações, dicionários gastronómicos, etc. No âmbito da rubrica que tivemos por cá durante o confinamento (Fique em Casa), também surgiram Dicionários das Palavras Protetoras (AQUI).

Excerto de O Alfabeto Nojento de David Machado e David Pintor

Completamente "fora da caixa" é este recente trabalho de David Machado e David Pintor, O Alfabeto Nojento, que promete gerar boas gargalhadas junto dos mais traquinas e alguns "incómodos" junto dos adultos. Trata-se de uma obra pautada pelo humor, onde a asneira é a rainha. Mas... será que vai reinar para sempre? Este livro traz de presente um póster com um alfabeto gigante.


E esta seleção não ficaria completa sem uma obra de autoria internacional. Trazemos Maurice Sendak, cuja obra tem vindo a ser traduzida pela nossa Carla Maia de Almeida, para a Kalandraka. Neste pequeno livro, Vida de Crocodilo - Um Alfabeto, que integra uma (também) pequena coleção de 4 livros (imagem abaixo), o alfabeto serve de mote para a elaboração de uma breve e divertida narrativa:

Excerto de Vida de Crocodilo - Um Alfabeto, de Maurice Sendak


Este modelo pode também servir de inspiração para criar "ao jeito de...", assim como os restantes livros da coleção:


Os dicionários e abecedários literários constituem, assim, excelentes obras a integrar a seleção de leituras da criança que entra para a escola, pela aproximação ao tema, pelo humor de que se revestem e pelas potencialidades criativas que encerram. É claro que o momento que partilhamos com os nossos filhos, aconchegados a ler, é válido por si só e garantia de criação de memórias afetivas. O resto são bónus...

Boas leituras e bom ano letivo!

[LMB]

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Vou para a escola: vou aprender a ler!

Esta é, sem dúvida, a resposta mais ouvida pelas crianças que se preparam para ingressar no 1º ciclo do ensino básico, quando questionadas sobre o que vão fazer na escola. Deixando para trás as salas de jardim de infância (ou as casas dos avós...), iniciam agora o seu percurso escolar formal.  

Os livros falam de tudo!
É importante que da biblioteca do pequeno leitor façam parte alguns clássicos,
que conviverão harmoniosamente com obras contemporâneas.



A criança tem, neste momento, grandes expectativas em relação à leitura. Aprender a ler vai dar-lhe acesso a um mundo novo: penetrar no universo das histórias, decifrar legendas de programas televisivos ou digitais, descobrir instruções de jogos, etc. 

Todavia, a aprendizagem formal da leitura é um processo longo (e nem sempre fácil). É frequente, nesta fase, que pais e professores se angustiem, e que a própria criança (cheia de expectativas)  se sinta, por vezes, dececionada.
Esta é, portanto, uma fase extremamente delicada, pois a obsessão pela aprendizagem da decifração (muitas vezes por parte dos adultos) pode comprometer seriamente a aprendizagem e o desenvolvimento do gosto pela leitura, e a consequente formação do leitor.

Partilhamos, neste sentido, duas ideias (muito fáceis de pôr em prática) que em muito poderão contribuir para tornar este momento mais tranquilo, e para fazer germinar e crescer as sementes do amor ao livro e à leitura.

A poesia deve continuar a fazer parte das leituras com a criança.
(Excerto de A Casa da Poesia, de José Jorge Letria e Rui Castro)




1. Continuar a ler, gratuitamente e diariamente, para as crianças.

É fundamental que pais e professores continuem a alimentar o gosto e o prazer de ler.
Pode, de facto, ser uma tentação deixar de ler à criança, sob pretexto de que "ela agora já sabe ler". Mas, na verdade, não sabe. Aprender a ler é um processo demorado que comporta a aprendizagem de todo um código e das suas diferentes combinações (a fase da decifração). Até que a criança domine esse código, de modo a poder ler com a velocidade suficiente que lhe permita compreender o que lê, decorrem vários meses, muitas vezes em número superior a um ano letivo. 

Se à criança que vinha habituada a ouvir ler, pela voz do educador no jardim de infância, ou dos pais na hora de deitar, tendo garantido o seu aporte diário de alimento do imaginário, lhe é retirado esse momento de graça, a imagem da leitura vai ficar reduzida a um amálgama de textos soltos do manual escolar, compostos intencionalmente para o ensino da decifração, aos quais falta um enredo, um fio narrativo sólido, uma alma. Se a par do ensino da decifração, deixarmos de ensinar o gosto, de juntar afeto, a leitura depressa se transformará numa atividade aborrecida e sem grande sentido.

Associar momentos lúdicos à leitura contribui para lhe conferir um
caráter divertido, para associar memórias positivas ao ato de ler.
Os livros-objeto são uma tendência da atual produção literária para a infância.


Continuar a ler para e com a criança depois da entrada no ensino formal, e ao longo de todo o percurso do 1º ciclo, é garantir que o imaginário e a enciclopédia literária do leitor em formação continuam a ser alimentados. E é também uma oportunidade única de estreitar laços afetivos.

Não podemos deixar de recordar, a este propósito, o célebre trabalho de Daniel Pennac Como um Romance, onde o autor, sem complacências, apresenta um retrato bastante fiel deste momento crítico:

"Que grande traição!
Ele, a leitura e nós próprios formávamos uma Trindade todas as noites reconciliada; agora, ele está sozinho perante um livro que lhe é hostil.
A leveza das nossas frases libertava-o do peso; agora, a indecifrável agitação das letras sufoca-o a tal ponto que até o impede de sonhar.
Nós tínhamo-lo iniciado na vertical; agora ele está esmagado pela imensidão do esforço. 
(...)
Éramos os contadores, passamos a ser os contabilistas."
Pennac, 2003: 48-50 [1ª ed. 1991]

 

Daniel Pennac: Como um Romance e Les droits du Lecteur. 
Altamente recomendado para mediadores de leitura, sobretudo nesta fase.

2. Selecionar bons livros

A produção literária para a infância oferece hoje um manancial de temas e de discursos muito variados. É importante que da biblioteca do pequeno leitor façam parte textos de qualidade, textos do património tradicional, textos de temáticas atuais, textos com "temas sérios", textos com humor, poesia, narrativa, álbuns e livros-objeto.
Alguns dos temas presentes na atual literatura para a infância já foram sendo tratados neste espaço, como por exemplo as representações da infância, dos avós, do ambiente, do verão, da arte, da interculturalidade, entre outros. 

É importante procurar versões fidedignas dos contos tradicionais.
O diálogo entre o texto verbal e as boas ilustrações convidam a leituras plurais.


Quanto mais diversificarmos a oferta e sairmos de lugares comuns (como livros inspirados em séries e programas de televisão, ou adaptações redutoras de alguns clássicos com ilustrações estereotipadas), mais enriquecida ficará a enciclopédia literária do pequeno leitor. Dizemos pequeno, convictos, porém, de que a boa literatura de potencial receção leitora infantil se destina a todas as idades, como temos vindo a confirmar, ano após ano, através do Programa ELF.

Acreditamos na bondade dos livros e no seu potencial transformador. Continuaremos, pois, a alimentar estas duas ideias para que a leitura tenha sempre, mas neste momento em particular, um lugar especial em cada lar. 


Incluir os chamados temas difíceis ou fraturantes na biblioteca do pequeno leitor
 contribui para fomentar a reflexão sobre as grandes questões da humanidade.


Ao longo dos próximos dias apresentaremos, na nossa página de facebook e no nosso Instagram, algumas sugestões de leituras a integrar a seleção Vou para a escola: vou aprender a LER!

Desejamos a todos um bom ano letivo!
[LMB]