sábado, 23 de maio de 2020

As representações da Arte na Literatura para a Infância

Comemoramos a 18 de maio o dia internacional dos museus, lugares de encontro com a memória e com a arte. Embalados pela efeméride, decidimos ir em busca de representações da arte na literatura de potencial receção leitora infantil.


As diferentes formas de arte manifestam-se de distintos modos na literatura, que é também uma forma de arte, o que torna estes livros particularmente ricos em termos de diálogos intertextuais, intersemióticos e interartísticos.



Inspirada nos movimentos modernos expressionistas, e partindo da célebre pintura  de Franz Marc, a obra O artista que pintou um cavalo azul, de Eric Carle, é exemplo das representações da pintura na atual literatura para a infância. Ao mesmo tempo que constitui uma homenagem ao artista, apresenta-se como um hino à liberdade do ato de criar. 


Paratexto final:
pintura de Franz Mark, e nota biográfica do pintor e do autor.

A temática animal é também a inspiração do inusitado Caderno de Animalista, de Antón Fortes e Maurízio A. C. Quarelo. Neste trabalho, os autores convocam um conjunto de obras célebres do século XX, transformando-as em novas obras de arte, que se fazem acompanhar por composições textuais muito originais.



O jogo começa na capa, com a Cadela von Dálmata, uma recriação de Sylvia von Harden, de Otto Dix, e segue no interior por "retratos animalistas" inspirados em obras como O Grito de Edvard Munch, que dá origem a O Guincho, O Beijo, de Gustav Klint... culminado em Ceci n'est pas une pipe, o célebre trabalho de René Magritte, que deu origem a Ceci n'est pas un escargot (imagem abaixo).

última página de Caderno de Animalista

Trata-se de um excelente livro para ser degustado, primeiro por leitores autónomos, e depois pelos pequenos leitores, acompanhados pelo mediador, que os guiará na descoberta dos intertextos escondidos. Poderá constituir uma excelente ferramenta de descoberta da arte. A Rita Pimenta fala deste livro AQUI, e a Ana Margarida Ramos apresenta uma interessante resenha do mesmo na Casa da leitura. No Blogue Revolta da Freixa também se fala desta obra.

Quanto a nós, que, para além da vertente reflexiva gostamos também de explorar a vertente lúdica e criativa da literatura, aproveitamos a dica de Magritte e propomos ao pequeno (e grande) leitor um jogo, que além o ajudar, naturalmente, a descobrir "o que é a arte?", permite-lhe experimentar a força e o poder de olhar de novo, ou olhar sob um prisma diferente para as coisas do dia a dia.



Ora, afinal, isto é, ou não é, um cachimbo? O diálogo em torno desta questão levará à resposta de que, efetivamente, não é um cachimbo, mas uma representação do mesmo... 
Mas... não sendo um cachimbo, podemos, então, transformá-lo noutro objeto. O jogo consiste em manusear a imagem, virando-a em diferentes posições, ocultando parte da imagem..., e a criar leituras diferentes. Esta dinâmica já originou respostas como "um escorrega, uma rampa, um vaso, um sapato, um suporte de casacos... e até um apagador de velas!": é um jogo muito interessante, no qual podem participar todos os membros da família, e ao qual parece ter recorrido também Josse Goffin, autora dos livros sem palavras OH! e AH!

Álbum OH!: Dupla página do interior, ainda com uma aba página oculta,
 evoca o Cachimbo de Magritte

Álbum OH!: Ao abrirmos a página oculta, ficamos com uma tripla página
 que nos revela a "transformação" do cachimbo.

Já no álbum AH!, a autora, recorrendo ao mesmo jogo, enriquece o trabalho com a inclusão de uma obra de arte explícita, em cada uma das triplas páginas. Estas obras de arte, maioritariamente ligadas ao universo da pintura e da escultura, convivem harmoniosamente com objetos ligados à vida do artista, como o pincel ou a tinta, e dialogam, simultaneamente, com outras linguagens, como o cinema ou a literatura, como podemos observar no exemplo abaixo:

AH!: tripla página do miolo 

Assistimos aqui a um interessante diálogo entre a sétima arte (evocada pela luz), a pintura, de Picasso, e a literatura, materializada nas personagens da Fábula O Corvo e a Raposa, sujeita a uma certa subversão: o queijo que cai do bico do corvo não é consequência do elogio astucioso da raposa, mas antes, do deslumbramento perante o Retrato de Marie-Thérèse.
Em jeito de compêndio de arte, este álbum é enriquecido com informação complementar, na contracapa, sobre todas as obras de arte evocadas no seu interior:

AH!: Contracapa



  
Na Literatura para a Infância, encontramos também registos que dialogam com a música, de que são exemplo As Quatro Estações e Quadros de uma Exposição, duas obras inspiradas nas peças musicais de Vivaldi e Mussorgsky, respetivamente. Em torno da música, é criada uma narrativa textual, acompanhada de uma componente pictórica, que, combinadas com a música que acompanha o livro, resultam em experiências sensoriais muito ricas. Já falamos destas obras noutros lugares, indicados nas legendas abaixo.


Esta obra integrou o Programa ELF (falamos dela aqui)

Falamos desta obra AQUI

Estas obras, para além da riqueza intertual, são um convite a conhecer grandes autores da música erudita, a conhecer lugares de encontro com a arte, e ainda a conviver com elementos do imaginário popular universal, como acontece em Quadros de uma Exposição:


(versão integral apenas disponível para uso interno, 
sala de aula e biblioteca escolar)


A arte materializa-se, também, na atual edição para a infância em livros que são verdadeiros objetos artísticos, como é o caso dos livros pop-up, e de que é exemplo este trabalho de Marco Taylor: O homem coração de choupo, o primeiro pop-up inteiramente português:



O homem coração de choupo: dupla página do pop-up

A tridimensionalidade da obra confere-lhe o estatuto de livro-objeto, um produto estético em franca expansão no universo da literatura que já não se destina, exclusivamente, à infância. Este reforço da materialidade do livro é um convite a que o leitor se detenha e se incorpore na eventual narrativa, se sinta parte integrante do diálogo artístico.


Por último,  as biografias romanceadas, que são outra forma de incorporação da arte nos livros de potencial receção leitora infantil e juvenil. A título de exemplo, selecionamos Nadir Afonso, o pintor de cidades geométricas, um livro de Raquel Ramos, que é um convite a conhecer a vida e a obra do artista transmontano evocado.



Incorporar a arte, nas suas diferentes manifestações, no dia a dia de cada um de nós, a começar pelo universo familiar, lugar das mais importantes aprendizagens, mais do que necessário, é urgente. É urgente resgatar os saberes artísticos e humanísticos, como antídoto contra o aceleramento e consumo desenfreados, como nos recorda Nuccio Ordine (2016) no seu célebre manifesto A Utilidade do Inútil:

“Custa-nos ver homens e mulheres entregues a uma corrida louca em direção à terra prometida do lucro, onde tudo aquilo que os rodeia – a natureza, os objetos, ou outros seres humanos – não suscita o menor interesse. O olhar fixo no objetivo de alcançar não lhes permite colher a alegria dos pequenos gestos quotidianos e descobrir a beleza que pulsa nas nossas vidas, num pôr-de-sol, num céu estrelado, na ternura de um beijo, numa flor a desabrochar, numa borboleta a voar, no sorriso de uma criança. Pois, muitas vezes é nas coisas mais simples que se sente a grandeza.”

Para saber mais, sugestões não faltam!

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