sábado, 30 de maio de 2020

Representações da Criança na Literatura para a Infância

A crianças é uma presença assídua na literatura infantojuvenil. O nosso imaginário encontra-se povoado de pequenos heróis que saíram dos contos populares, como a menina do Capuchinho Vermelho, a Cinderela, o João Pé de Feijão, Hansel e Grettel..., ou de clássicos da LIJ: quem não se recorda de Pippi das Meias Altas, do Principezinho, de Peter Pan, de Heidi, ou da incontornável Alice?... O que não é de estranhar, se atendermos ao destinatário preferencial destas produções e ao papel formativo que a LIJ sempre assumiu.

Hoje propomos uma visita a algumas obras contemporâneas para conhecermos as crianças que as habitam. Selecionamos um conjunto de livros que nos permitem conhecer diferentes representações da infância na atual produção literária a ela destinada.


Na literatura encontramos a criança associada à candura, à inocência, ao sonho... mas também ao sofrimento, à pobreza e à solidão. Encontramos a criança a protagonizar narrativas conducentes ao conhecimento da riqueza da diversidade, e a criança inconformada que constrói um mundo melhor. E também encontramos a criança com profissão de criança, que brinca e "prega partidas". E ainda aquela que conhece e compreende a magia que a beleza das pequenas coisas pode operar.

Pormenores do miolo das obras O Livro da Tila e O Palhaço Verde,
de Matilde Rosa Araújo

Matilde Rosa Araújo, um nome maior da literatura infantil portuguesa, com fortes ecos de Andersen, tratou a infância com uma enorme sensibilidade, não se escusando a expor a vulnerabilidade e sofrimento infantis. A prová-lo estão, por exemplo, 
poemas como "Canção de embalar Bonequinhas Pobres", ou "Chuvinha de Maio", que podemos encontrar em O Livro da Tila, ou a obra O Palhaço Verde, onde a solidão da orfandade vai sendo preenchida pela alegria das pequenas coisas,

"-Senhor Palhaço, tem aqui o seu quarto! Venha ver!
Era um pequeno espaço, por detrás de um biombo, com uma cama de ferro branca, coberta com uma manta de bocadinhos de chita e muitas cores, todos unidos a ponto miúdo por Dona Esperancinha.
-Ih! que lindo! - disse o Palhaço. - Parece um campo de flores!
Que importava ter só aquela cama de chita se para o palhaço ela era mesmo um campo de flores?" (in O Palhaço Verde de Matilde Rosa Araújo)

Pormenor do miolo de Allumette

A infância sofrida de Andersen é revisitada em Allumette de Tomi Ungerer, uma reescrita de "A menina dos fósforos". Allumette, a protagonista desta narrativa, não se resigna, contudo, à miséria e à pobreza que lhe calharam em sorte, antes manifesta um tão grande desejo de viver, que a força deste parece precipitar a abundância que o céu, literalmente, lhe envia, e que vem mudar o curso da narrativa. Ao contrário da menina de Andersen, a inconformada Allumette resiste, de forma corajosa e empreendedora, ensinando aos "poderosos" da cidade uma valiosa lição.

três obras que convidam ao conhecimento da diversidade
São vários os textos protagonizados por crianças de diferentes raças, obras que materializam a riqueza da diversidade, e que são um convite a conhecer o mundo e a dialogar com o Outro. As crianças que habitam nestas três obras são africanas e protagonizam narrativas bem distintas. 
Adjoa é a heroína e a narradora de Endireita-te, um livro da autoria de Rémi Courgeon, editado muito recentemente em Portugal (2020), pelo Orfeu Negro. Adjoa recua à infância e partilha a sua história, que começa assim:

Pormenor das primeiras páginas do miolo

 "-Adjoa, endireita-te! Quantas vezes na vida ouvi eu esta frase, esta canção? Quantas vezes a mãe, a avó e as tias ma cantaram? Quantas vezes na vida as meninas, as raparigas e as mulheres a escutaram? Aqui em Djougou, para que uma menina cresça, põem -lhe coisas na cabeça. Coisas que ela não pode deixar cair  e que tem de erguer para o céu. Quanto mais ela cresce, mais pesadas são. (...)
Toda a vida levei à cabeça cabaças, baldes, jerricãs, milho, desgostos, gasolina, dois coelhos numa gaiola, uma panela de pressão, um segredo difícil de guardar, uma prótese, um grande rádio cheio de canções, latas, bacias, lenha, invejazinhas bicudas (...)"

Karim é o menino que percorre as páginas de Árvores no Caminho, de Régine Garcia e Vanina Starckoff. Neste álbum narrativo, que tem como cenários o mercado (inspirado no mercado de Burkina Faso) e a savana, a criança levada pela curiosidade e pela aventura, próprias da infância, perde-se da mãe, sendo amparada e guiada pelas árvores que encontra no caminho: um hino ao amor e às origens.

Pormenor do miolo de Árvores no Caminho
Handa é a menina que quer surpreender a sua amiga Akeio, enchendo um cesto com exóticas frutas coloridas. Mora na história A Surpresa de Handa, de Eillen Browne, e além de ser uma verdadeira surpresa (para Handa e para Akeio), é um divertido, delicioso e sumarento passeio pela fauna e flora africanas. Este belo álbum está disponível nos áudiolivros do Letra Pequena:


O património popular é igualmente rico em representações da infância, como o provam, por exemplo, os trava línguas, as lengalengas ou as canções de embalar: registos que encerram, quase sempre, uma grande carga afetiva, como podemos ver no exemplo retirado da coletânea O som das Lengalengas, de Luísa Ducla Soares, João Vaz de Carvalho e Daniel Completo:

Pormenor do miolo de O som das lengalengas: "Canção de Embalar"

O olhar límpido e a natural empatia para com a beleza, característicos da infância, são evidente no álbum sem palavras Flores Mágicas, de Jon Arno Lawson e Sydney Smith. O poder transformador de pequenos gestos levados a efeito pela menina que protagoniza esta obra, e que passam despercebidos ao adulto que a acompanha, é um dos caminhos a percorrer neste maravilhoso álbum. 
Efetivamente, é esse olhar que capta o belo que torna a criança literária capaz de descobertas e aventuras que sintonizam na perfeição com a linguagem das flores e dos pequenos seres: quem não se recorda, a propósito, da pequena Isabel, que mora n'A Floresta de Sophia?


Pormenor do miolo de Flores Mágicas
A criança com profissão de criança, dada às descobertas e traquinices típicas deste período da vida, é também presença regular na atual literatura para a infância. Selecionamos, a propósito, dois exemplos representativos do panorama nacional e internacional. De fora vem Tomás o Traquinas, um livro bem disposto, escrito por Jorge Rico Ródenas e ilustrado pour Laura Cantone, dona de um estilo único, marcado pela exuberância da imagem. De dentro, trazemos um divertidíssimo trabalho de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, És mesmo tu?


O humor que percorre estes livros é um hino ao riso salutar e à gargalhada espontânea, tão típicos da infância, não lhes retirando, contudo, o poder de entrar subtilmente em universos de algum modo fraturantes, igualmente típicos da infância.

Pormenor do miolo de Tomás o Traquinas

Pormenor do miolo de És mesmo tu?
Estas obras, pela ludicidade de que se revestem, constituem também um convite à brincadeira. Podemos experimentar, em família, criar "partidas" como as do Tomás, brincando com as palavras e com a imaginação, ou então fazer um elenco de "alcunhas a rimar" ao jeito do álbum do Planeta Tangerina. São atividades que favorecem o conhecimento e a valorização do património familiar e etnográfico.  
Em jeito de boas vindas às crianças que regressam no seu dia ao Jardim de Infância, aqui ficam Tomás o Traquinas e És mesmo tu?


(vídeo apenas disponível para uso interno)

Boas leituras!

sábado, 23 de maio de 2020

As representações da Arte na Literatura para a Infância

Comemoramos a 18 de maio o dia internacional dos museus, lugares de encontro com a memória e com a arte. Embalados pela efeméride, decidimos ir em busca de representações da arte na literatura de potencial receção leitora infantil.


As diferentes formas de arte manifestam-se de distintos modos na literatura, que é também uma forma de arte, o que torna estes livros particularmente ricos em termos de diálogos intertextuais, intersemióticos e interartísticos.



Inspirada nos movimentos modernos expressionistas, e partindo da célebre pintura  de Franz Marc, a obra O artista que pintou um cavalo azul, de Eric Carle, é exemplo das representações da pintura na atual literatura para a infância. Ao mesmo tempo que constitui uma homenagem ao artista, apresenta-se como um hino à liberdade do ato de criar. 


Paratexto final:
pintura de Franz Mark, e nota biográfica do pintor e do autor.

A temática animal é também a inspiração do inusitado Caderno de Animalista, de Antón Fortes e Maurízio A. C. Quarelo. Neste trabalho, os autores convocam um conjunto de obras célebres do século XX, transformando-as em novas obras de arte, que se fazem acompanhar por composições textuais muito originais.



O jogo começa na capa, com a Cadela von Dálmata, uma recriação de Sylvia von Harden, de Otto Dix, e segue no interior por "retratos animalistas" inspirados em obras como O Grito de Edvard Munch, que dá origem a O Guincho, O Beijo, de Gustav Klint... culminado em Ceci n'est pas une pipe, o célebre trabalho de René Magritte, que deu origem a Ceci n'est pas un escargot (imagem abaixo).

última página de Caderno de Animalista

Trata-se de um excelente livro para ser degustado, primeiro por leitores autónomos, e depois pelos pequenos leitores, acompanhados pelo mediador, que os guiará na descoberta dos intertextos escondidos. Poderá constituir uma excelente ferramenta de descoberta da arte. A Rita Pimenta fala deste livro AQUI, e a Ana Margarida Ramos apresenta uma interessante resenha do mesmo na Casa da leitura. No Blogue Revolta da Freixa também se fala desta obra.

Quanto a nós, que, para além da vertente reflexiva gostamos também de explorar a vertente lúdica e criativa da literatura, aproveitamos a dica de Magritte e propomos ao pequeno (e grande) leitor um jogo, que além o ajudar, naturalmente, a descobrir "o que é a arte?", permite-lhe experimentar a força e o poder de olhar de novo, ou olhar sob um prisma diferente para as coisas do dia a dia.



Ora, afinal, isto é, ou não é, um cachimbo? O diálogo em torno desta questão levará à resposta de que, efetivamente, não é um cachimbo, mas uma representação do mesmo... 
Mas... não sendo um cachimbo, podemos, então, transformá-lo noutro objeto. O jogo consiste em manusear a imagem, virando-a em diferentes posições, ocultando parte da imagem..., e a criar leituras diferentes. Esta dinâmica já originou respostas como "um escorrega, uma rampa, um vaso, um sapato, um suporte de casacos... e até um apagador de velas!": é um jogo muito interessante, no qual podem participar todos os membros da família, e ao qual parece ter recorrido também Josse Goffin, autora dos livros sem palavras OH! e AH!

Álbum OH!: Dupla página do interior, ainda com uma aba página oculta,
 evoca o Cachimbo de Magritte

Álbum OH!: Ao abrirmos a página oculta, ficamos com uma tripla página
 que nos revela a "transformação" do cachimbo.

Já no álbum AH!, a autora, recorrendo ao mesmo jogo, enriquece o trabalho com a inclusão de uma obra de arte explícita, em cada uma das triplas páginas. Estas obras de arte, maioritariamente ligadas ao universo da pintura e da escultura, convivem harmoniosamente com objetos ligados à vida do artista, como o pincel ou a tinta, e dialogam, simultaneamente, com outras linguagens, como o cinema ou a literatura, como podemos observar no exemplo abaixo:

AH!: tripla página do miolo 

Assistimos aqui a um interessante diálogo entre a sétima arte (evocada pela luz), a pintura, de Picasso, e a literatura, materializada nas personagens da Fábula O Corvo e a Raposa, sujeita a uma certa subversão: o queijo que cai do bico do corvo não é consequência do elogio astucioso da raposa, mas antes, do deslumbramento perante o Retrato de Marie-Thérèse.
Em jeito de compêndio de arte, este álbum é enriquecido com informação complementar, na contracapa, sobre todas as obras de arte evocadas no seu interior:

AH!: Contracapa



  
Na Literatura para a Infância, encontramos também registos que dialogam com a música, de que são exemplo As Quatro Estações e Quadros de uma Exposição, duas obras inspiradas nas peças musicais de Vivaldi e Mussorgsky, respetivamente. Em torno da música, é criada uma narrativa textual, acompanhada de uma componente pictórica, que, combinadas com a música que acompanha o livro, resultam em experiências sensoriais muito ricas. Já falamos destas obras noutros lugares, indicados nas legendas abaixo.


Esta obra integrou o Programa ELF (falamos dela aqui)

Falamos desta obra AQUI

Estas obras, para além da riqueza intertual, são um convite a conhecer grandes autores da música erudita, a conhecer lugares de encontro com a arte, e ainda a conviver com elementos do imaginário popular universal, como acontece em Quadros de uma Exposição:


(versão integral apenas disponível para uso interno, 
sala de aula e biblioteca escolar)


A arte materializa-se, também, na atual edição para a infância em livros que são verdadeiros objetos artísticos, como é o caso dos livros pop-up, e de que é exemplo este trabalho de Marco Taylor: O homem coração de choupo, o primeiro pop-up inteiramente português:



O homem coração de choupo: dupla página do pop-up

A tridimensionalidade da obra confere-lhe o estatuto de livro-objeto, um produto estético em franca expansão no universo da literatura que já não se destina, exclusivamente, à infância. Este reforço da materialidade do livro é um convite a que o leitor se detenha e se incorpore na eventual narrativa, se sinta parte integrante do diálogo artístico.


Por último,  as biografias romanceadas, que são outra forma de incorporação da arte nos livros de potencial receção leitora infantil e juvenil. A título de exemplo, selecionamos Nadir Afonso, o pintor de cidades geométricas, um livro de Raquel Ramos, que é um convite a conhecer a vida e a obra do artista transmontano evocado.



Incorporar a arte, nas suas diferentes manifestações, no dia a dia de cada um de nós, a começar pelo universo familiar, lugar das mais importantes aprendizagens, mais do que necessário, é urgente. É urgente resgatar os saberes artísticos e humanísticos, como antídoto contra o aceleramento e consumo desenfreados, como nos recorda Nuccio Ordine (2016) no seu célebre manifesto A Utilidade do Inútil:

“Custa-nos ver homens e mulheres entregues a uma corrida louca em direção à terra prometida do lucro, onde tudo aquilo que os rodeia – a natureza, os objetos, ou outros seres humanos – não suscita o menor interesse. O olhar fixo no objetivo de alcançar não lhes permite colher a alegria dos pequenos gestos quotidianos e descobrir a beleza que pulsa nas nossas vidas, num pôr-de-sol, num céu estrelado, na ternura de um beijo, numa flor a desabrochar, numa borboleta a voar, no sorriso de uma criança. Pois, muitas vezes é nas coisas mais simples que se sente a grandeza.”

Para saber mais, sugestões não faltam!

sábado, 16 de maio de 2020

As histórias fazem bem - Eduardo Sá

O psicólogo Eduardo Sá apresenta, com a simplicidade que o caracteriza, um conjunto de vantagens sobre a leitura de histórias de pais para filhos, desmistificando muitas das questões em torno dos livros e do ato de ler com e para crianças.



O autor já havia saído em defesa das histórias, dos livros e da leitura, no seu Manifesto contra as histórias. "Deixem-se de histórias, e contem histórias..." Vale a pena ler!

domingo, 3 de maio de 2020

Especial Dia da Mãe #Fique em Casa 15


Mãe, que verdade linda
O nascer encerra,
Eu nasci de ti,
Como a flor da Terra 

(Matilde Rosa Araújo)

Comemoramos hoje o Dia da Mãe. Neste especial #Fique em Casa, propomos uma pequena viagem pelas representações da figura da mãe em algumas obras da literatura para a infância (e não só). Uma singela homenagem a todas as mães, para degustar em família.




Os livros de que falamos:


Poesia de autoria nacional:
coletâneas organizadas por
 José António Gomes (Conto estrelas em ti),
Antero de Quental (Tesouro Poético para a Infância)
e Poesia de Matilde Rosa Araújo (O Livro da Tila)

Narrativas de autoria nacional:
 Amores de Família (Carla Maia de Almeida e Marta Monteiro)
Onde está a Minha Mãe (António Mota e Sebastião Peixoto)
Rosinda (Marco Taylor)

Obras de autores estrangeiros:
A minha mãe (Anthony Browne)
A minha mãe (Stéphane Servant e Emmanuelle Houdart)
Eu sei tudo sobre as mamãs (Nathalie Delebarre e Aurélie Blanz)

Esta é apenas uma pequeníssima amostra de obras que contêm representações da Mãe na Literatura. Para conhecer outras obras sobre o tema, vale a pena espreitar a seleção que o Plano Nacional de Leitura fez para assinalar esta data: AQUI

Miolo do álbum poético A minha mãe

#Fiquem em casa e redescrubram o prazer de ler juntos

A todos, um Feliz Dia da Mãe!