sábado, 27 de fevereiro de 2021

Aqui há gatos (literários) que miam em português! (1)

Qual é o animal que melhor combina com a Lua?

Pois é, a miar à lua (e não só) andam os gatos no mês de fevereiro, o mês em que, curiosamente, também se comemora o dia do gato (no dia 17). Este felino, além de combinar bem com a Lua (que esteve na base da nossa última seleção de leituras), também combina bem com livros, talvez pela imagem de sossego e relaxamento que encerra, sendo frequente encontrá-lo associado às bibliotecas. 

E foram estes os motivos que nos levaram em busca de gatos literários, ao longo deste mês. E encontramos MUITOS! Desde gatos clássicos, como o Gato de Cheshire, que mora na emblemática obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, passando pelo Gato das Botas de Charles Perrault, até ao famoso Zorbas, o herói da História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar. de Luís Sepúlveda, a Literatura (infantojuvenil e não só) está repleta de miados!

Muitos foram, portanto, os gatos literários que saltaram das estantes durante a nossa busca, querendo marcar presença nesta seleção. Não os podendo trazer todos, decidimos focar-nos naqueles que miavam em português.

Selecionamos 14 obras de autoria nacional, que dividimos em dois grupos: prosa e poesia (ou microtexto).

Hoje, vamos conhecer 8 gatos, Radar, Karl, Gatuno, Zacarias, Branquinho, Dourado e ainda dois gatos cujas histórias não revelam o seu nome. As capas encontram-se na imagem acima. Vamos tentar descobrir a que obra pertence cada um destes gatos?


Juntamos Radar e Karl, os gatos que vivem em O Gato e a Rainha Só, uma obra que data de 2005, e que marca a estreia literária de Carla Maia de Almeida para a infância e juventude, um livro ilustrado por Júlio Vanzeler, e o Gato Karl, um trabalho do mesmo ano, de Francisco Duarte Mangas, com ilustrações de Manuela Bacelar, nome maior na história do álbum em Portugal.

Radar, o gato que perde o seu lar, a casa dos plátanos, num incêndio, enceta uma demanda em busca de uma nova casa (tema, aliás, recorrente na obra da autora). Ao longo dos episódios que compõem esta busca, é possível ouvir ecos da incontornável Alice, quer no insólito que os caracteriza, como os nomes dos lugares ("Terra do Silêncio Prometido"; "Terra da Água Salgada"; "Terra do Riso Eterno"); quer na originalidade de alguns elementos, como "A Sopa de Tudo", "A Máquina de costurar Palavras", o "Telecaleidoscópio" ou o "DMA" ("dia de miar alto"); quer ainda nas próprias reflexões que o gato tece, como por exemplo:

"Se não tinha sítio para onde voltar, talvez não estivesse realmente perdido" (...)

"Bem... se o tempo tiver cheiro, talvez os sonhos possam ter sabor, não é?"

Karl, à semelhança de Radar, é também um gato com sonhos, que partilha com o narrador. Faz reuniões com outros gatos (e também com ratos) debaixo da magnólia, debate-se com a desmedida ambição humana, e coleciona palavras no seu caderninho de capas cor de fogo.

"Karl, ao contrário dos outros gatos, em vez de dormir cingido no sol, ilude o tempo a ler. É delicado a folhear os livros: não humedece a pata na língua ao virar a página, nem dobra o canto da folha para marcar o fim da leitura. Algumas das palavras dos livros, desloca-as, como fragmentos de um tesouro, para um caderninho de capas  cor de fogo."

E são as palavras que Karl (ajudado pelos seus amigos) criteriosamente seleciona e guarda no seu caderninho, que vão dar origem à Palavraria, uma loja bem original, instalada na magnólia onde decorrem as reuniões, e que mora noutra obra do autor O Gato Karl e a Palavraria (estas obras integraram o programa ELF 3). 


Gatuno, Branquinho e Zacarias são os gatos que vivem em O Livro dos Quintais de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho (2010), uma das obras que integra a trilogia Histórias Paralelas, Episódios da Vida de um Jovem Gato, obra que marca a estreia literária de Raquel Ramos no universo infantojuvenil, um trabalho com ilustrações de Carla Nazareth, de 2014, e O Moleiro e as Três Árvores, uma obra de Conceição Vicente, ilustrada por Cátia Vidinhas, editada no mesmo ano.

O Livro dos Quintais é um claro convite à descoberta e ao jogo, um passeio pelos 8 quintais que dão corpo à narrativa e pelas rotinas dos que os habitam, ao longo dos 12 meses do ano. À sombra deste registo "lúdico", a obra dialoga incessantemente com o leitor, através da subtileza das descrições, e da voz que é emprestada aos habitantes daqueles quintais, vozes que bem poderiam ser as nossas. 

É curioso o modo como os autores fogem aos lugares-comuns, que normalmente se associam aos meses e estações do ano, como as festividades, colocando a tónica, antes, na relação do homem com a natureza. Vejamos, por exemplo, o texto correspondente ao mês de fevereiro:

"Fevereiro

D. Otília corre a espreitar a horta todas as manhãs.

Não tarda hão de ver-se os primeiros rebentos de favas e ervilhas.

Nos dias de sol, vem sentar-se cá fora, mãos no colo, muito quieta:

«Se olhar com atenção, consigo ver crescer cada talo que aqui está»

A Carolina e o Tiago vivem mascarados há quinze dias. A vizinha, no outro dia, até se assustou com um deles dependurado num ramo:

«- Que miúdos do diabo... Se fossem meus netos, dizia-lhes!»

Em fevereiro, o Gatuno enrosca-se sossegado aos pés da D. Otília."

E, assim, ao finalizar cada dupla página, o leitor enceta uma verdadeira caça ao Gatuno (quase a lembrar o clássico Onde está o Wally), entre a multiplicidade de pormenores que compõem as belíssimas ilustrações, também elas a lembrar os desenhos e pinturas das crianças. Só em dezembro, durante o casamento de dois vizinhos (o amor acontece, curiosamente, entre os habitantes mais sensíveis à beleza naturalmente presente) saberemos porque é que o Gatuno se chama Gatuno. 

Branquinho é um gato sensível que, não aguentando a chegada de um novo membro da família, abandona o conforto da Casa Grande de Barras Amarelas. Episódios da vida de um jovem gato representa uma viagem iniciática, a busca por um lugar no mundo. Trata-se de um relato delicioso, sensível, onde a palavra e a poesia têm um lugar e uma força especiais. 

É fora dos muros da Casa que Branquinho vai conhecer o ciúme, a desilusão e o desespero. Mas é também ao longo desta jornada de descoberta que o nosso herói, auxiliado pelo velho pescador poeta, vai descobrir o algodão azul do céu, a força da palavra Querer e o poder do Sonho.  

"- Hoje mesmo vais aprender a ler. Mais tarde levo-te a um lugar onde encontrarás remédio para a tua tristeza.

Aquela era a primeira vez que o velho se referia ao meu segredo. Sem mais delongas começou nesse momento a ensinar-me a ler.

Primeiro aprendi a soletrar a palavra mar, depois água, peixe, gaivota, barco e liberdade. A seguir introduziu as palavras amizade, amor, juventude, perdão, felicidade, consciência, viver e sonhar."

Zacarias é o gato do moinho, uma interessante personagem que Conceição Vicente acrescenta a um conto popular recolhido na região de Águeda, O Moleiro e as Três Árvores. Trata-se, em nosso entender, de um texto que é um genuíno elogio à Sabedoria da Natureza, aqui representada pelas árvores. Zacarias é quem estabelece a ligação entre o Homem e o ambiente. Sensível e conhecedor de leis maiores, é ele que avisa os donos do moinho que o rodízio se partiu, é ele que "sente um arrepio" quando o dono pega num machado para abater nova árvore para construir um rodízio, e é ele que, indignado, abandona o moleiro que não deu ouvidos à voz do Carvalho,

"Como é que o moleiro tinha tido coragem para derrubar o carvalho? Era lá que morava o pica-pau que animava o bosque com a sua batida; era lá que os melros faziam ninho; e era encostado ao seu tronco que ele sempre dormira a sesta. Zacarias fixou o dono e deixou sair a raiva pelos olhos. Iria vingar-se, podia o moleiro estar certo!"

E, a partir daqui, tudo se precipita: os sacos de grão ficam esburacados, pois Zacarias deixou de caçar os ratos do moinho, e as águas do rio, na primeira cheia, levam o engenho.

No entanto, o moleiro aprende a lição. E depois de plantado um novo carvalho, "Zacarias voltou ao moinho e passou a dormir a sesta junto ao tronco do carvalho novo." 

Alguns gatos literários moram em livros que abordam temas fraturantes, como a morte. Estes livros são uma excelente oportunidade para abordar, com subtileza, as questões mais inquietantes que moram no íntimo de cada um de nós.

Gato procura-se, um livro de Ana Saldanha e Yara Kono (2014), apresenta, de um modo muito interessante, a forma como reagem à morte (neste caso, do animal de estimação) o adulto e a criança. Pela voz do narrador criança, vamos conhecendo as "desculpas" que os adultos (o pai, a mãe, a vizinha, o avô, a avó) vão dando para o desaparecimento do gato. Quanto mais próximo o familiar, mais distante a verdade. Recolhidas todas as opiniões, a criança deixa ao adulto uma mensagem subtil (ou um apelo à honestidade):

"O meu gato desapareceu. E eu sei que nunca mais volta, mas não digo nada. É que não é para eu saber o que é que lhe aconteceu."

Já a obra Um gato tem sete vidas, de Luísa Ducla Soares e Francisco Cunha (2011), é uma interessante viagem pelas 7 vidas do gato, pelos sucessivos encontros que vai tendo com a Morte, que a ilustração nos apresenta como um pacífico gato branco, e pelo acolhimento tranquilo que o gato lhe oferece quando chega ao fim das suas 7 vidas. 

"Foi então que novamente viu a morte.

- Olá meu querido amigo - disse ela, e o gato enroscou-se à volta das suas pernas.

- Que me contas? - perguntou a morte. Há muito que não te via.

- Sinto-me tão fraco. Já vivi sete vidas.

A morte pegou-lhe ao colo, passou as mãos esqueléticas pela sua pelagem, devagarinho, e pôs-se a cantar como alguém lhe cantara quendo ele era pequenino. (...)"

Ao longo de 7 breves capítulos, que corporizam os 7 encontros com a Morte, que vem buscar 1) uma galinha que imitou os patos e se precipitou num lago, 2) um pássaro bebé que caiu numa pedra ao ensaiar o voo, 3) um cão que foi atropelado, 4) um porco em dia de matança, 5) um peixe que saltou do aquário,  6) uma noiva com diarreia, e 7) os soldados na guerra, os autores vão apresentando a morte de um modo tão natural, que a familiarização do pequeno (e grande) leitor com o tema acontece, também, naturalmente.

E, por último, não podia deixar de marcar presença nesta seleção um trabalho de Matilde Rosa Araújo, autora cujo centenário de nascimento comemoramos este ano: O Gato Dourado, um conto de 1977, que integra a obra com o mesmo título, que reúne um conjunto de 7 pequenos contos, lustrados por outro dos nomes maiores da ilustração em Portugal, Maria Keil.

Marcado pela sensibilidade que caracteriza a escrita de Matilde, onde não faltam as flores e as crianças, este conto narra o modo como uma menina reage à morte do seu gato Dourado, como a integra no ciclo natural das coisas e da vida, e como faz "luz da sua tristeza", sob o olhar ternurento da mãe. Podemos conhecê-lo na imagem abaixo.


E está completa a primeira parte da nossa viagem pelo universo felino na literatura portuguesa para a infância e juventude. Ficam, naturalmente, fora desta seleção muitos títulos e autores interessantes, que marcarão, certamente, presença noutras viagens (por exemplo, na que vamos propor no desafio que apresentamos abaixo).

Regressaremos em breve, para a segunda parte desta seleção: os gatos na poesia portuguesa para a infância!

Aqui fica, então, o desafio:

Vamos em busca de outros gatos literários? É só vestir a capa de detetive de livros, agarrar a lupa e seguir o rasto das garras e dos bigodes... 

Partilhem as vossas descobertas nos comentários ou nas nossas páginas de Facebook e Instagram.

Boas leituras e boas descobertas!

[LMB]


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