segunda-feira, 26 de julho de 2021

Os avós das histórias (e das memórias)

Comemoramos hoje o Dia dos Avós, uma data à qual não poderíamos ficar indiferentes, tendo em conta o número crescente de (boas) publicações literárias destinadas à infância, onde os avós marcam presença.

Há um ano, neste dia, apresentávamos uma seleção intitulada Que avós povoam a atual literatura para a infância?, e descobríamos diferentes facetas destes entes tão queridos.

Desta vez, a nossa escolha recaiu sobre um conjunto de textos que enfatizam o papel dos avós na sua qualidade de guardiões da memória, e a importância de construir (e preservar) memórias, a melhor forma de perpetuar a sua presença (para sempre).


João Pedro Mésseder, na sua coletânea de poesia Versos quase Matemáticos apresenta-nos um pequeno poema, Avô e Avó, composto por duas quadras apenas, que bem poderia servir de mote para esta questão das histórias e das memórias...

Capa e pormenor do miolo da obra Versos quase matemáticos de João Pedro Mésseder e Catarina Fernandes

O reduzido texto verbal é, todavia, "compensado" pela interessante ilustração que o acompanha (imagem acima), e que, já agora, nos põe a pensar no título do livro... Ou, como explicamos esta sombra? 

Pormenor do miolo da obra Amores de Família, de Carla Maia de Almeida e Marta Monteiro

Na obra da dupla nacional Carla Maia de Almeida e Marta Monteiro, Amores de Família (de que já falamos AQUI e AQUI), moram a Avó Ceres e o Avô Júpiter (imagem acima). Dois avós que não deixam por mãos alheias a tarefa de ensinar aos netos aquelas coisas importantes, mas demoradas, que é importante aprender (quer seja para experimentar fazer coisas que levam tempo, quer seja para que um dia também possam ser ensinadas a outros netos), como "fazer compotas e conservas de frutas", "construir casinhas de madeira para os pássaros", "esperar que as sementes germinem", e aguardar pelo Natal (que devolve os filhos ao lar).

(Nota: nesta obra ainda podemos encontrar a Avó Proserpina, muitos pais, muitas mães, e um interessante ABC dos deuses que "explicará" o comportamento das  famílias que aqui moram...)

Pormenores das páginas de introdução a cada um dos textos, e última página da obra Pelo rio correm histórias, de Maria da Conceição Vicente e Rui Castro

Maria da Conceição Vicente dá vida a três histórias do património popular de Águeda, que se ligam entre si pela voz de um avô que as conta ao seu neto, uma opção reveladora da consciência da importância dos avós na transmissão dos diferentes legados, neste caso o legado cultural e etnográfico da terra.

Pelo rio correm histórias é um livro muito bonito, onde as ilustrações de Rui Castro desempenham um papel de aproximação ao pequeno leitor, uma espécie de convite a jogar (é impossível não virem à nossa mente imagens de peças de lego, ou do vídeojogo Minecratf). 

Afinal, a brincar também podemos contar histórias e apropriarmo-nos desta herança comum que é o imaginário popular.

Capa e pormenores do miolo de O Anjo da Guarda do Avô

Da incontornável autora de Quando a mãe grita, Jutta Bauer, o livro O Anjo da Guarda do Avô conta a história das visitas que o neto, narrador, fez ao avô no hospital, nos seus últimos dias. Começa assim:

"O meu avô gostava de contar histórias. Contava sempre alguma coisa quando eu ia visitá-lo. - «...meu rapaz, ninguém me segurava...»"

E assim começa uma viagem pela vida do avô, desde a infância, passando pela juventude e vida adulta, até à velhice. Uma vida preenchida com coisas boas e menos boas, onde convivem a traquinice e as zangas, o amor e a guerra, a alegria e a fome... entre outras dicotomias (na imagem acima podemos ver dois exemplos)..

Nesta obra, à semelhança do que acontece noutros (bons) trabalhos onde o diálogo texto verbal e texto icónico é particularmente bem conseguido, a ilustração desempenha um papel muito enriquecedor no que à ampliação de sentidos diz respeito. Atente-se, por exemplo, na presença do "Anjo da Guarda do Avô" que o acompanha desde a infância até à morte (que também se encontra apenas subentendida, pela presença de um "novo anjo" que passa a proteger o neto). 

A simplicidade do texto e a delicadeza das ilustrações fazem desta obra um trabalho extraordinário, altamente indutor de reflexão (e de conversa) em torno de questões que se afiguram, muitas vezes, difíceis.

Pormenor do miolo de Se o mundo inteiro fosse feito de memórias, de Joseph Coelho e Allison Colpoys 

Editado em Portugal em fevereiro de 2021, Se o mundo inteiro fosse feito de memórias, de Joseph Coelho e Allison Colpoys, é um dos mais recentes trabalhos literários onde figura a representação dos avós.

Pela voz da neta, a criança narradora, somos convidados a dar um passeio pelas quatro estações do ano, revisitando as memórias que a menina guarda do seu avô em cada estação. 

"se o mundo inteiro fosse a primavera, eu plantaria d novo os aniversários do meu avô, para que ele jamais envelhecesse"

Acompanhámo-la no momento da dor da perda do avô ("algumas histórias são silenciosas") e apoiámo-la na construção do seu caleidoscópio de memórias, pois o avô preparou-lhe um último presente...

"No cadeirão do meu avô está um caderno novo. O papel é de pétalas de primavera, cosido com fio vermelho-rubi. Tem o meu nome na capa. Está novinho e por estrear, e foi feito pelo meu avô."

Pormenor do miolo A última paragem, de Matt de la Peña e Christian Robinson

Como o próprio título indicia, A última paragem, de Matt de la Peña e Christian Robinson, concentra grande parte da sua ação no autocarro que Alex e a Avó apanham à saída da igreja até à Rua do Mercado (a última paragem):

Poderíamos concentrar-nos no destino e na missão que a avó levava, mas isso equivaleria a perdermos a viagem... uma viagem aparentemente simples, mas onde Alex, ajudado pelos sábios gestos da avó, irá descobrir beleza em lugares  inesperados... e aprender a alegria da generosidade.

"Quando saiu do autocarros, Alex olhou em volta. Passeios esburacados e portas partidas, janelas cheias de grafitis e portas fechadas. Deu a mão à avó.

- Porque é que esta zona está sempre tão suja?

Ela sorriu e apontou para o céu.

- Por vezes, quando estás rodeado de lixo, consegues ver melhor as coisas belas, Alex."

O humor que permeia o texto, a profundidade da mensagem e a beleza das ilustrações fazem deste livro um verdadeiro tesouro. Não terá sido, pois, por acaso que foi a obra vencedora da medalha Newbery e livro de honra Caldecot.


Desejamos a todos os nossos leitores, grandes e pequenos, avós e netos, pais e filhos, excelentes leituras em família, e um MUITO FELIZ DIA DOS AVÓS!

P.S. Poderão encontrar outras sugestões sobre este tema AQUI e AQUI.

[LMB]

sábado, 24 de julho de 2021

As crianças que moram nos livros (1)

Na literatura de potencial receção leitora infantil encontramos, vastas vezes, a criança como protagonista, ora como narrador personagem, ora como personagem principal... 

Num ano particularmente dedicado à criança, pelas comemorações em torno do Ano Internacional para a eliminação do Trabalho Infantil, fomos em busca de (mais) crianças que moram nos livros (pois já AQUI havíamos falado sobre as Representações da Infância na Literatura).


Selecionamos para este mês, que conta já com muitas famílias de férias, quatro títulos de autoria internacional, chegados até nós bem recentemente, entre 2020 e 2021, pelas editoras Fábula, Presença, Kalandraka e Orfeu Negro. Convidamos, então, os nossos leitores (grandes e pequenos) a conhecer Vera, Jaime, Rosalie, e uma outra criança, cujo nome não é revelado, que nos brinda com uma carta (de amor) maravilhosa!

capa e paratexto final de Se algum dia vieres à Terra, de Sophie Blackall

Sophie Blackall, cuja obra chegou ao nosso país em 2020, com Olá Farol (de que falamos aqui), volta a encantar os leitores portugueses com este maravilhoso trabalho, publicado em março deste ano pela Fábula: Se algum dia vieres à Terra
Como a própria autora nos conta, num interessante paratexto que podemos encontrar na última página da obra (ver imagem acima), 

"A Ideia deste livro surgiu no cume de uma montanha dos Himalaias, no Butão. Eu estava a trabalhar com a organização Save the Children e tinha escalado um caminho em ziguezague para visitar uma pequena escola com apenas duas salas e dez alunos." (...)

pormenor do miolo de Se algum dia vieres à Terra, de Sophie Blackall

Só a introdução a este texto "explicativo" já nos oferece uma interessante reflexão sobre a importância dos nossos gestos, independentemente do número de pessoas que por eles possam ser tocadas, pois, na verdade, deste "pequeno gesto" nasceu esta grande obra, que é, como dizíamos, uma maravilhosa carta de amor à nossa Casa. Uma carta que pode chegar a todos os habitantes que partilham este planeta:

"Nós, os seres humanos, definimo-nos através do sítio onde nascemos, onde vivemos, daquilo em que acreditamos, das roupas que vestimos e das línguas que falamos. Mas não existe uma pessoa «típica». Somos todos diferentes. No entanto, há algo que todos partilhamos - o planeta em que vivemos."

Ao longo de sete dezenas de belíssimas páginas, profusamente ilustradas, e pela voz (ou pela pena) da criança narradora, que escreve esta bela carta (de amor) destinada ao "Querido visitante do espaço sideral", somos convidados, numa espécie de visita guiada à Casa, a conhecer (ou a recordar?) a beleza do mundo, em todas as suas dimensões. 
Trata-se, sem dúvida, de uma das melhores obras para conhecer a Agenda 2030 e para pôr em prática a máxima "Conhecer para Amar".

pormenor do miolo de Se algum dia vieres à Terra, de Sophie Blackall

Num livro com um título algo intrigante mora Vera, a menina que protagoniza a obra de Marina Núñez e Avi Ofer, Caça-Olhares, um trabalho belíssimo, publicado pela kalandraka, em 2020.
Preocupada com o facto de ninguém olhar senão para um certo dispositivo que todos seguram na mão, em frente aos olhos, Vera decide ir à caça de olhares...

Capa, guardas e pormenores do miolo de Caça-Olhares, de Marina Núñez e Avi Ofer


Mas Vera não é bem sucedida na sua missão, pois, à exceção de uma ou outra criança, a quem consegue caçar um olhar cúmplice, os olhares dos adultos não se voltam para ela: nem fora de casa, nem na própria casa! (imagem acima).
"Se os adultos não observam nem contemplam as coisas maravilhosas que há no mundo, como poderei eu fazer com que olhem para mim?", questiona-se a menina, desiludida...

Até que um dia, Vera decide procurar ajuda junto da avó Guida, pois

"A avó tem sempre olhares para ela, mesmo que diga que já não vê lá muito bem. Escuta todas as histórias, mesmo que diga que já não ouve como dantes. E nunca tem pressa, nem mil e uma coisas para fazer."

Será Vera bem sucedida, desta vez?
 
pormenor do miolo de Caça-Olhares, de Marina Núñez e Avi Ofer


Peter Reynolds, autor da famosa obra O Ponto, dá-nos a conhecer Jaime, a criança que mora no livro O Menino que colecionava palavras, publicado em 2020, pela Presença. Uma obra que nos revela um especial poder: o poder transformador das palavras (como podemos ler na contracapa).

pormenor do miolo, capa e guarda final de O Menino que colecionava Palavras, de Peter Reynolds

Jaime tinha um gosto particular no que respeita a coleções. Não colecionava cromos, nem selos, nem moedas... e nem olhares (como Vera). Jaime colecionava PALAVRAS, que ouvia, que via, que lia. PALAVRAS breves e doces, palavras bonitas e palavras polissílabas, "que soavam como pequenas canções". Jaime encheu muitos cadernos com as suas coleções...
Mas um dia... "ao transportá-las... Jaime escorregou e as palavras voaram."
O que será que vai fazer este colecionador especial?...

pormenor do miolo de O Menino que colecionava Palavras, de Peter Reynolds

E, por último, trazemos Rosalie, uma menina muito especial que mora num pequeno grande livro, escrito por Timothée de Fombelle e ilustrado por Isabelle Arsenaut, Capitão Rosalie, que chegou até nós em 2020, pela Orfeu Negro.

A menina que mora neste livro, tal como Vera, também tem uma missão... mas bem diferente. 
"Tenho um segredo
Na escola, todos pensam que estou a sonhar
Mas eu sou um soldado em missão. Capitão Rosalie."

miolo de Capitão Rosalie, de Timothée de Fombelle e Isabelle Arsenaut 

Estamos em 1917. Rosalie, a narradora, é uma menina de cinco anos, que vive com a mãe porque o pai está na guerra.

"Não tenho qualquer memória para lá da guerra. Era muito pequenina antes de ela começar. E vejo bem que a minha mãe continua a ler ainda durante muito tempo, apesar de só haver uma única página escrita no envelope.”

Curiosa (e não convencida) sobre o conteúdo das cartas que a mãe lhe lê, Rosalie decide empreender a missão que a ajudará a descobrir a verdade por que tanto anseia.

"Olho de novo para o quadro. Pela primeira vez tudo se torna claro. Como se uma neblina se evaporasse subitamente das coisas. A minha missão está quase terminada. Não devo esperar mais.”

miolo de Capitão Rosalie, de Timothée de Fombelle e Isabelle Arsenaut 

Trata-se de um dos mais belos trabalhos que conhecemos dentro da temática bélica. Um texto forte, que não deixa nenhum leitor indiferente.

Entre palavras e olhares, desejamos a todos uns dias de descanso de muita cumplicidade (os livros dão uma ajuda).



A todos, boas leituras!

[LMB]