sábado, 7 de novembro de 2020

Bruxa que é bruxa faz bruxedos! Será?

Quer celebremos, ou não, o Halloween, a figura da bruxa acaba sempre por se fazer notar nas celebrações do meio do outono. Não podíamos, pois, perder esta oportunidade oferecida pelo contexto, para sugerir uma viagem pelo universo das bruxas, personagens incontornáveis na literatura para a infância (e não só!).
 

Seleção literária "histórias com bruxas dentro"


Quase sempre a representar o vilão, a bruxa desempenha um importante papel nas narrativas que integra. Se é verdade que nem sempre simpatizamos com elas, também é certo que sem os seus feitiços a história não teria o mesmo efeito. 


Três contos populares, "A Bela Adormecida", "Rapunzel" e "Hansel e Gretel", maravilhosamente ilustrados, onde a bruxa desempenha o papel de vilã.


Muito presente no conto popular (quem não se recorda da "velhinha" que mora na Casinha de Chocolate? Ou da bruxa que aprisionou Rapunzel? Ou daquela que garantiu que Bela Adormecida se picasse no fuso? Ou ainda da malvada madrasta de Branca de Neve?), a bruxa continua a marcar presença na atual produção literária para a infância, ora em novas edições do conto popular, ora em registos onde vai deixando cair a sua capa de vilã. 

Pormenores do início da narrativa de Hansel e Gretel

Os dez títulos que selecionamos integram bruxas para todos os gostos. Revisitamos Hansel e Gretel, dos irmãos Grimm, numa bonita edição com ilustrações de Elizabeth Zwerger, uma obra sem condescendências, com total respeito pelo texto dos Irmãos Grimm (imagem acima). 

De Carlos Nogueira e Patrícia Figueiredo, trazemos Os dois Irmãos e a Bruxa, um conto popular português onde ecoa a saga dos irmãos da Casinha de Chocolate (imagem abaixo), mas com "toques" bem portugueses, como este arranque da narrativa:

"Era uma vez uma mulher que tinha um filho e uma filha. Um dia, mandou o filho buscar cinco réis de tremoços, e depois disse aos dois:
- Vou para a floresta apanhar lenha. Se eu não voltar, sigam as cascas de tremoços que vou deitando pelo caminho até me encontrar."

Este belíssimo trabalho de Carlos Nogueira e Patrícia Figueiredo apresenta-nos um conto popular português com fortes ecos de Hansel e Gretel (ou a Casinha de Chocolate).

Fomos em busca da princesa que dormiu o mais longo sono da história dos contos, e descobrimo-la num belíssimo álbum pop-up: A Bela Adormecida. Um interessante trabalho, onde texto verbal e imagem tridimensional dialogam em perfeito equilíbrio, mantendo bem visíveis as dicotomias do conto: a fada e a bruxa, a bondade e a maldade, a alegria e a tristeza..., culminando numa clara vitória do bem sobre o mal com o incontornável "viveram felizes para sempre".

Pormenores da ilustração tridimensional do livro pop-up A Bela Adormecida

A cuidar dos seus rapúncios, fomos encontrar a bruxa que aprisionou Rapunzel, numa original edição da Oqo, da autoria de Iratxe López de Munáin, responsável pelo texto (que recupera dos Irmãos Grimm) e pelas ilustrações. Nesta obra destacamos a originalidade das ilustrações, que conferem um clima muito peculiar à narrativa, condizente com o estado de espírito que vai marcando o percurso das personagens, e, simultaneamente,  complementar em termos de informação enciclopédica: repare-se, por exemplo, nas guardas preenchidas com a flor que acaba por ditar o destino de Rapunzel: os rapúncios (imagem abaixo).

Pormenores da obra Rapunzel: dupla página do miolo, capa e guardas iniciais preenchidas com rapúncios.

Surpreendente e inusitada é a obra que nos chega da editora The Poets and Dragons Society,  Bruxa, Bruxa, vem à minha festa, de Arden Druce e Pat Ludlow, um álbum de dimensões generosas e recheio "assustador", onde cabe ao leitor decidir se a bruxa é, ou não, vilã. Este álbum convoca um conjunto de personagens que habitam o imaginário do pequeno leitor, como o gato, o dragão, o unicórnio, o duende, o pirata, o lobo, ou o capuchinho vermelho, que vão sendo convidados para a festa do narrador, por encadeamento, 

"Bruxa, Bruxa, por favor, vem à minha festa.
Obrigada. Irei sim, se convidares o gato."

"Gato, gato, por favor, vem à minha festa.
Obrigado. Irei sim, se convidares o ..."

culminando num inesperado final...

Pormenor da dupla página inicial e da capa de Bruxa, Bruxa, vem à minha festa.

A nossa viagem pelo universo das bruxas literárias levou-nos, inevitavelmente, a paragens onde esta personagem parece ter-se cansado da fama de vilã. É o que acontece, por exemplo,  em "As duas bruxas gémeas", um texto de Luísa Ducla Soares, com ilustrações de Célia Fernandes, que integra a obra Histórias com Números. Trata-se de uma narrativa bem disposta, onde assistimos ao célebre "virar do feitiço contra o feiticeiro". Começa com o anúncio do nascimento das duas bruxas:

"Querido marido, Feiticeiro do Diabo,

Tivemos hoje duas filhas. Uma é linda, cheia de sardas, com o nariz torto como um papagaio, cabelo espetado e duas verrugas enormes na cara. Vais ter orgulho nela. Vou chamar-lhe Lua Nova, por ser tão escurinha.
Mas a outra... parece defeituosa. Saiu loura, com dois grandes olhos azuis, e não tem sequer um sinal na pele. Que desgraça! Vou chamar-lhe Raio de Sol, porque é mesmo um raio de uma bruxa!
Quando puderes vem cá vê-las, e aproveita para trazeres um caldeirão novo, porque o nosso já está esburacado.
Que todas as maldições te acompanhem!
Bruxa Repuxa

Não estranhem o tom da carta, porque as bruxas não costumam ser muito simpáticas." (acrescenta a autora em jeito de lembrete).

Pormenor do miolo de "As duas Bruxas Gémeas" de Luísa Ducla Soares e Célia Fernandes, e capa da obra que integra o conto.

Já Henriqueta, a bruxinha que protagoniza Henriqueta e o bruxedo da lua, de Lurdes Breda e Manuela Rocha, tem como passatempo favorito fazer bruxarias (que é afinal o trabalho das bruxas), atormentando a vida dos que se cruzam com ela. E tudo corre bem para Henriqueta até ao dia em que decide fazer um bruxedo à Lua, e se vê, literalmente, a andar para trás. 
Trata-se de uma história ternurenta, à qual não faltam os ingredientes típicos de uma história com bruxas (aranhas, morcegos, corujas, caldeirões, poções...), com a particularidade de apresentar os cenários a preto e branco, convidando à cumplicidade do leitor para dar o tom e o toque final à narrativa. 

Capa e pormenor do miolo de Henriqueta e o bruxedo da lua: destaque para a possibilidade de o leitor colaborar na construção dos cenários.

E como bruxa que se preze tem um gato preto, não podíamos deixar de convidar Leonardo, o gato preto que vivia nas ruas e que ansiava encontrar uma bruxa que cuidasse de si. Mora na obra Desculpa... Por acaso és uma bruxa? de Emily Horn e Pawel Pawlak, e conquista qualquer leitor.
Leonardo costuma refugiar-se na biblioteca, pois é um lugar quentinho, e, um dia, ao folhear a enciclopédia das bruxas, descobre que todas as bruxas têm um gato preto, uma vassoura, um caldeirão e usam chapéus pontiagudos e meias às riscas. 
Decidido na sua missão de ser "adotado" por uma bruxa, enceta uma divertida viagem pelas ruas da cidade à procura de uma... será que a vai encontrar? Onde? A imagem abaixo dá-nos uma pista... 

Capa e pormenor do miolo de Desculpa... Por acaso és uma bruxa?

E quem disse que as bruxas não podem ser divertidas? António Mota, no seu célebre poema "Numa casa muito estranha", diz-nos que sim! Este texto, inicialmente publicado em Se tu visses o que eu vi, e recentemente incluído na coletânea Casa de Palavras, uma edição comemorativa dos 40 anos de vida literária do autor, com ilustrações de João Vaz de Carvalho e música de Daniel Completo, é garantia de sucesso e gargalhada junto dos mais novos. (Recordamos, a propósito, uma das vistas que o autor fez em março 2020 à EB da Feitosa):


Tendo como ingrediente principal o humor, e como condimento os jogos de palavras, onde o ritmo e a musicalidade marcam forte presença, este texto apresenta-se ainda como pretexto para refletir e desconstruir alguns dos principais estereótipos veiculados pelo conto popular.

Capa e dupla página correspondente ao texto "Numa casa muito estranha"

 
A encerrar a nossa seleção de livros com bruxas dentro, propomos a leitura de A casa com patas de galinha, um livro de Sophie Anderson, que recupera e reatualiza a figura de Baba Yaga. São 282 páginas de convívio com personagens que oscilam entre o mundo dos vivos e o dos mortos, de reflexão sobre o lugar e a missão de cada um, num registo bastante emotivo: para degustar em família.

"O meu destino não está traçado, e é assim que gosto dele. As possibilidades são tão infindáveis quanto as estrelas. Enchem o mundo dos vivos e o mundo Yaga e até cintilam nas festas para os mortos." (Sophie Anderson)

Capa e contra capa de A Casa com Patas de Galinha.


Desejamos que a magia da leitura conquiste todas as famílias. 
Deixemo-nos, pois, enfeitiçar!



terça-feira, 6 de outubro de 2020

Livros e Ideias para Celebrar o Outono

Celebrar o outono pode ser um caminho de descoberta da beleza, um caminho de gratidão à Natureza, e uma oportunidade para refletir sobre o lugar de cada um de nós nesta Casa comum.

Representações do outono na Literatura para a Infância (e não só).

Tornou-se habitual a expressão "agora já não há quatro estações" (o que não deixa conter alguma verdade, sobretudo devido às alterações climáticas). 
No entanto, ainda é possível encontrar características específicas de cada uma das quatro estações, e parece-nos que também será possível, de algum modo, reverter esta situação (recordemos os meses de confinamento, quando o mundo parou e a natureza se revelou – imagens de cidades sem fumo, de espécies animais que regressaram, etc, inundaram os noticiários e as redes socias). 

Há um conjunto considerável de obras que têm por base a temática das estações do ano. Falamos de algumas, a propósito das representações do verão na LIJ, AQUI. Na imagem, podemos ver representações do outono em A Árvore, de Iela Mari, O outono é o tempo a envelhecer, de Mª Isabel César Anjo e Mª Keil, um livrinho que integra Estações do Ano, de que falamos AQUI, e Começa numa Semente, de Webber Knowles, obra a que já nos referimos a propósito das comemorações do dia da Terra, AQUI.

As representações do ambiente na literatura para a infância apontam, hoje, para uma visão mais ecocêntrica do mundo, em detrimento da visão antropocêntrica, que durante muito tempo prevaleceu. Estas obras podem ser um caminho para aguçar o olhar para o Belo, para a riqueza e diversidade da Natureza.

Representação do outono, num belíssimo pop-up (em inglês) que faz o pequeno leitor participar das descobertas que se revelam a cada nova estação. Seasons, de Anna Milbourn e Alexandra Badiu.

Trazemos, neste sentido, um conjunto de sugestões literárias (e não só) para celebrar o outono. Obras que nos convidam a (re)descobrir a essência, a abrandar, a aprender que tudo tem o seu ritmo e o seu tempo.

Pormenores das obras Seasons, de Anna Milbourn e Alexandra Badiu e As quatro Estações de António José Abad Varela e Emílio Urberuaga.

Conhecer para amar. Conhecer a Terra, o Planeta, a Natureza, o Universo e as suas leis, para o aprendermos a amar e a respeitar.  Neste campo, obras que versem sobre os ritmos e os ciclos da natureza, por exemplo, podem desempenhar um importante papel. 

A incontornável Floresta de Sophia e o emblemático passeio pelas quatro estações, pela mão de Isabel, a protagonista desta belíssima narrativa.

Enquanto parte do mesmo cosmos, nós também somos seres de ciclos e de ritmos. Ritmos esses que deixamos de respeitar, e o resultado está à vista! Portanto, regressar às origens, através da literatura, constitui um possível (e poderoso) meio de reflexão sobre o nosso lugar nesta Casa que é de Todos.


Pormenor da primeira página de A Pequena Semente, de Eric Carle, uma narrativa que começa e acaba no outono, reforçando a ciclicidade da natureza. Falamos desta obra AQUI.

O outono, que "é tempo em que o sol parece morno" (Anjo, Mª. I. e Keil, Mª. in O outono é o tempo a envelhecer), convida a passeios pelo campo, pelo monte, pela floresta. Sair para passear e recolher alguns elementos característicos desta estação, para além de proporcionar a experiência real do contacto com a natureza e a sua exuberância cromática nesta época do ano, pode resultar em atividades bem divertidas, e ao mesmo tempo, formativas. Podemos, por exemplo, construir um alfabeto de outono, inspirando-nos nas ideias que a Marie Claire apresenta, AQUI, e depois brincar com as letras, elaborando um Alfabeto Literário, inspirado nesta estação do ano (Falamos de Abecedários Literários AQUI).


Capa e pormenor de duas páginas dedicadas ao outono, em Um Ano Inteiro, Agenda para explorar a Natureza

Os passeios pelo exterior podem ainda ser enriquecidos com as sugestões apresentadas em Um Ano Inteiro (imagem acima), um livro que faz recordar os antigos almanaques, e que é um manancial de ideias para pôr em prática. Há propostas para todas as semanas do ano. Em outubro, por exemplo, os autores recomendam: 
    Semana 1: Escuta a brama dos veados: é agora!
    Semana 2: Faz uma Arca do Tesouro com Sementes (gostamos particularmente desta ideia:)
    Semana 3: Sai à procura de flores outonais
    Semana 4: Faz as aves voar no teu caderno

Pormenores das páginas dedicadas ao início do outono, em O Grande Livro das Tradições Populares Portuguesas, de José Viale Moutinho.


O outono, pelo recolhimento que começa a pedir, é também o momento ideal para resgatar tradições, recolher lendas, provérbios e histórias (dos livros ou da vida). O Grande Livro da Tradições Populares Portuguesas, de José Viale Moutinho (imagem acima) é um excelente livro para toda a família, com um texto para cada dia do ano, ao longo das quatro estações, dos doze meses do ano. 

Excerto do conto "Quando o outono não apareceu", in Brincar às escondidas com a Mãe Natureza, de Rosário Alçada Araújo e Catarina França.

A beleza desta estação é também uma fonte de inspiração para criar pequenas histórias. Agarrando a ideia que o título do texto da imagem sugere ("Quando o outono não apareceu"), vamos criar! O que poderia impedir o outono de aparecer? O que lhe teria acontecido? Por onde andaria?


"O outono entra sempre pela janela", um dos poemas dedicados ao outono em Poemas para as quatro estações, de Manuela Leitão e Catarina Correia Marques, obra de que falamos AQUI, a propósito da primavera.

E para completar este puzzle de ideias para celebrar o outono (com livros), só falta mesmo trazer a poesia. Voltamos a sugerir os Poemas para as quatro estações, obra de que já falamos na Primavera, com a sugestão Andorinhas mensageiras de esperança, e no verão, a propósito das representações do verão na LIJ. Para celebrar o outono, as autoras trazem-nos "O outono entra sempre pela janela" (imagem acima), "Menu serrano" (imagem abaixo), "A lenda de 11 de novembro", "A invasão" e "Árvores caducas".

Excerto de "Menu Serrano" in Poemas para as quatro estações.


Para trazer poesia para o nosso "caderno de criações de outono", sugerimos "escrever ao jeito de...", a partir do poema "Menu Serrano". É simples:
É só pegar no modelo e estrutura das estrofes (imagem acima) e substituir os nomes das serras (que podem ser terras), das pessoas, das ações e dos petiscos.
    Por exemplo:

    Fui à quinta de pentieiros
    Levei comigo o Tomé
    Comemos broas de mel
    E bebemos água-pé


Representações do outono nos livros
  
Em O Amanhã não está à venda, um texto do brasileiro Ailton Krenak, publicado durante o confinamento, o autor refere:

“A nossa mãe, a Terra, nos dá de graça o oxigénio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã (…). Tomara que não voltemos à normalidade, pois se voltarmos é sinal que não valeu de nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro (…) e aí teremos provado que a humanidade é uma mentira”.

Desejamos a todos belos passeios pelos caminhos do outono, e belas criações inspiradas nos livros! E desejamos, sobretudo, que este tempo seja um tempo de contemplação e deslumbramento que nos conduza à reflexão, sobretudo neste momento delicado que vivemos, que nos faz questionar a “normalidade”.

P.S. Podem continuar a fazer-nos chegar os vossos trabalhos, as vossas experiências, as vossas criações de outono. Usem, para o efeito, o formulário de contacto aqui do blogue ou enviem através da nossa página de FB.


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Abecedários Literários - receita de sucesso

Ao longo dos últimos dias, e como prometemos AQUI, apresentamos nas nossas páginas de Instagram e de Facebook, um conjunto de sugestões de leituras para integrar a biblioteca da criança que vai agora para o 1º ciclo (Vou para a escola: vou aprender a ler!). 

No seguimento dessas propostas, e porque a escola já começou, hoje trazemos uma seleção de abecedários literários


Esta tipologia de obra para a infância (e não só) torna-se particularmente atrativa na fase da aprendizagem formal da leitura, que corresponde à entrada para o 1º ano do 1º ciclo (6-7 anos). Efetivamente, porque a criança enceta um contacto mais próximo com as letras do alfabeto, explorando os sons, as composições silábicas e as palavras onde "moram" as letras, o olhar sobre o abecedário torna-se particularmente apurado.

Guardas iniciais e finais de O Alfabeto dos Bichos de José Jorge Letria e André Letria.
Este modelo repete-se em todos os livros desta coleção do autor.

Os dicionários e alfabetos (literários), cuja origem remonta ao séc. XIX, apareceram inicialmente associados a funções didáticas. Hoje, incorporam um conjunto diversificado de recursos literários e estéticos, e são uma tendência crescente na edição literária para a infância. Estas obras refletem, de algum modo, uma maior liberdade artística, e às vezes um cunho experimental, encerrando um elevado potencial no que à fruição estética diz respeito, e prestando-se a um sem número de atividades lúdicas e divertidas na escola ou na família. 


O Alfabeto dos Bichos, o primeiro de uma coleção de José Jorge Letria, da qual fazem parte O Alfabeto dos Países (de que falamos AQUI e AQUI), O Alfabeto da Natureza e O Alfabeto do Corpo Humano, é composto por 23 poemas, sobre 23 animais, ordenados alfabeticamente. Os textos refletem a mestria do autor em conjugar informação de índole diversa com subtis notas de humor, numa linguagem de poesia vestida. Uma das estratégias possíveis para ler esta obra poderá ser partindo da letra inicial do nome da criança e alargar aos nomes da família, dos amigos... a que ficarão associados os animais correspondentes. Vejamos o que calharia ao Luís, ao Leonardo, ao Lourenço, à Liliana, à Luísa e à Lúcia:

"Leopardo

Podia chamar-se Leonardo

este felino elegante

que na copa de uma árvore

parece um bicho distante;

nem esculpido em madeira

teria maior perfeição, arco de corda esticada

correndo ao sol do verão.

A pelagem pintalgada

lembra doença infantil,

não é sarampo ou varicela

nem um vírus feio e hostil." 

(Letria & Letria, in O Alfabeto dos Bichos)

Nesta obra é ainda visível a preocupação de enriquecer o "repertório animal" do pequeno leitor, com a inclusão de animais menos conhecidos, como é o caso do Quivi (imagem abaixo).

Excerto de O Alfabeto dos Bichos

Num registo marcado pela ludicidade, Luísa Ducla Soares brinca com as letras do alfabeto na sua emblemática obra Abecedário Maluco, um trabalho várias vezes reeditado, tal é o seu sucesso.

O abecedário maluco: a última edição (2019), com ilustrações de Maria Neradova, e edição de 2004, com ilustrações de Joana Quental

Nesta obra, da autora que comemora 50 anos de vida literária, encontramos o "abecedário maluco de nomes", a abrir a coletânea, e o "abecedário maluco de apelidos", a encerrar. O recheio é bem variado: entre os vários poemas que compõem a obra, encontramos títulos tão inusitados como "Viva o desmazelo!", "Tudo de pernas para o ar", "As palavras também fazem partidas", "Volta a Portugal... na asneira", "O menino Perguntador", e vários outros. Um trabalho que permite aprofundar a consciência fonológica, e, simultaneamente, alargar e apetrechar as várias enciclopédias do leitor em construção.

Excerto do poema que encerra a obra: "Abecedário maluco de apelidos"

No ano em que comemoramos o centenário do nascimento de Mário Castrim, merece um apontamento a sua obra Estas são as Letras, um original trabalho, que, seguindo a ordem alfabética, reúne 23 textos, escritos em diferentes  discursos e "formatos" e habitados por palavras conhecidas e desconhecidas. Sob a forma de poesia, poesia visual, texto dramático... o autor faz desta obra um verdadeiro laboratório linguístico e um hino à imaginação. Vejamos o texto dedicado à letra A:

"Isto é um arame de água ou um sonho de margem

Isto é a sombra de uma trave quase ao princípio da tarde

Isto é o voo de ave ao encontro doutra ave

acerta

aperta

aparafusa

Agora eu vim do princípio da água e do fim da Terra

sobre estes meus pezinhos leves

ando no mundo como tu me escreves"

(Mario Castrim e José Miguel Ribeiro in Estas são as Letras)

Ou, as páginas onde moram o Q e o R (imagem abaixo).

Excerto de Estas são as Letras, de Mário Castrim e José M. Ribeiro

João Pedro Mésseder e Marta Madureira decidem vestir as letras com números dando origem a este interessante trabalho: As Letras de Números Vestidas. Trata-se de mais uma viagem pelo nosso alfabeto, com paragens em todas as letras, onde pequenos textos incorporam nomes próprios (que indiciam a infância) e números. O recurso à rima torna a leitura muito apetecível para o pequeno leitor, fazendo com que o "ensinamento" implícito da ordem numérica associada ao alfabeto, passe quase despercebido enquanto tal: 

Excerto de As Letras de Números Vestidas de J. P. Mésseder e M. Madureira.


Os alfabetos literários são, como referimos, obras que permitem uma grande liberdade artística e estética. Por cá, talvez pelo facto de ter integrado todas as edições do Programa ELF, temos um carinho especial pelo Dicionário das Palavras Sonhadoras, de António Mota e Sebastião Peixoto.

Excerto de O Dicionário das Palavras Sonhadoras de A. Mota e S. Peixoto

Este belíssimo livro, que abre com um texto narrativo onde o leitor fica a conhecer a origem de um dicionário tão especial, integra uma lindíssima coleção de "metáforas", prestando-se a leituras múltiplas e também a atividades "ao jeito de...". Na verdade, as potencialidade deste dicionário já foram tão testadas pelas famílias que connosco têm trabalhado, que a garantia de sucesso é TOTAL. Falamos desta obra AQUI, AQUI, e AQUI.

 
Excerto de O Dicionário das Palavras Sonhadoras de A. Mota e S. Peixoto

A partir deste dicionário, que integra as 26 letras do atual alfabeto português, é possível construir um sem número de dicionários temáticos, por exemplo de acordo com os gostos e interesses dos leitores (grandes e pequenos). Pelo programa ELF já se passearam dicionários da família, dicionários divertidos, dicionário das profissões, dicionários do Natal, dicionários das estações, dicionários gastronómicos, etc. No âmbito da rubrica que tivemos por cá durante o confinamento (Fique em Casa), também surgiram Dicionários das Palavras Protetoras (AQUI).

Excerto de O Alfabeto Nojento de David Machado e David Pintor

Completamente "fora da caixa" é este recente trabalho de David Machado e David Pintor, O Alfabeto Nojento, que promete gerar boas gargalhadas junto dos mais traquinas e alguns "incómodos" junto dos adultos. Trata-se de uma obra pautada pelo humor, onde a asneira é a rainha. Mas... será que vai reinar para sempre? Este livro traz de presente um póster com um alfabeto gigante.


E esta seleção não ficaria completa sem uma obra de autoria internacional. Trazemos Maurice Sendak, cuja obra tem vindo a ser traduzida pela nossa Carla Maia de Almeida, para a Kalandraka. Neste pequeno livro, Vida de Crocodilo - Um Alfabeto, que integra uma (também) pequena coleção de 4 livros (imagem abaixo), o alfabeto serve de mote para a elaboração de uma breve e divertida narrativa:

Excerto de Vida de Crocodilo - Um Alfabeto, de Maurice Sendak


Este modelo pode também servir de inspiração para criar "ao jeito de...", assim como os restantes livros da coleção:


Os dicionários e abecedários literários constituem, assim, excelentes obras a integrar a seleção de leituras da criança que entra para a escola, pela aproximação ao tema, pelo humor de que se revestem e pelas potencialidades criativas que encerram. É claro que o momento que partilhamos com os nossos filhos, aconchegados a ler, é válido por si só e garantia de criação de memórias afetivas. O resto são bónus...

Boas leituras e bom ano letivo!

[LMB]

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Vou para a escola: vou aprender a ler!

Esta é, sem dúvida, a resposta mais ouvida pelas crianças que se preparam para ingressar no 1º ciclo do ensino básico, quando questionadas sobre o que vão fazer na escola. Deixando para trás as salas de jardim de infância (ou as casas dos avós...), iniciam agora o seu percurso escolar formal.  

Os livros falam de tudo!
É importante que da biblioteca do pequeno leitor façam parte alguns clássicos,
que conviverão harmoniosamente com obras contemporâneas.



A criança tem, neste momento, grandes expectativas em relação à leitura. Aprender a ler vai dar-lhe acesso a um mundo novo: penetrar no universo das histórias, decifrar legendas de programas televisivos ou digitais, descobrir instruções de jogos, etc. 

Todavia, a aprendizagem formal da leitura é um processo longo (e nem sempre fácil). É frequente, nesta fase, que pais e professores se angustiem, e que a própria criança (cheia de expectativas)  se sinta, por vezes, dececionada.
Esta é, portanto, uma fase extremamente delicada, pois a obsessão pela aprendizagem da decifração (muitas vezes por parte dos adultos) pode comprometer seriamente a aprendizagem e o desenvolvimento do gosto pela leitura, e a consequente formação do leitor.

Partilhamos, neste sentido, duas ideias (muito fáceis de pôr em prática) que em muito poderão contribuir para tornar este momento mais tranquilo, e para fazer germinar e crescer as sementes do amor ao livro e à leitura.

A poesia deve continuar a fazer parte das leituras com a criança.
(Excerto de A Casa da Poesia, de José Jorge Letria e Rui Castro)




1. Continuar a ler, gratuitamente e diariamente, para as crianças.

É fundamental que pais e professores continuem a alimentar o gosto e o prazer de ler.
Pode, de facto, ser uma tentação deixar de ler à criança, sob pretexto de que "ela agora já sabe ler". Mas, na verdade, não sabe. Aprender a ler é um processo demorado que comporta a aprendizagem de todo um código e das suas diferentes combinações (a fase da decifração). Até que a criança domine esse código, de modo a poder ler com a velocidade suficiente que lhe permita compreender o que lê, decorrem vários meses, muitas vezes em número superior a um ano letivo. 

Se à criança que vinha habituada a ouvir ler, pela voz do educador no jardim de infância, ou dos pais na hora de deitar, tendo garantido o seu aporte diário de alimento do imaginário, lhe é retirado esse momento de graça, a imagem da leitura vai ficar reduzida a um amálgama de textos soltos do manual escolar, compostos intencionalmente para o ensino da decifração, aos quais falta um enredo, um fio narrativo sólido, uma alma. Se a par do ensino da decifração, deixarmos de ensinar o gosto, de juntar afeto, a leitura depressa se transformará numa atividade aborrecida e sem grande sentido.

Associar momentos lúdicos à leitura contribui para lhe conferir um
caráter divertido, para associar memórias positivas ao ato de ler.
Os livros-objeto são uma tendência da atual produção literária para a infância.


Continuar a ler para e com a criança depois da entrada no ensino formal, e ao longo de todo o percurso do 1º ciclo, é garantir que o imaginário e a enciclopédia literária do leitor em formação continuam a ser alimentados. E é também uma oportunidade única de estreitar laços afetivos.

Não podemos deixar de recordar, a este propósito, o célebre trabalho de Daniel Pennac Como um Romance, onde o autor, sem complacências, apresenta um retrato bastante fiel deste momento crítico:

"Que grande traição!
Ele, a leitura e nós próprios formávamos uma Trindade todas as noites reconciliada; agora, ele está sozinho perante um livro que lhe é hostil.
A leveza das nossas frases libertava-o do peso; agora, a indecifrável agitação das letras sufoca-o a tal ponto que até o impede de sonhar.
Nós tínhamo-lo iniciado na vertical; agora ele está esmagado pela imensidão do esforço. 
(...)
Éramos os contadores, passamos a ser os contabilistas."
Pennac, 2003: 48-50 [1ª ed. 1991]

 

Daniel Pennac: Como um Romance e Les droits du Lecteur. 
Altamente recomendado para mediadores de leitura, sobretudo nesta fase.

2. Selecionar bons livros

A produção literária para a infância oferece hoje um manancial de temas e de discursos muito variados. É importante que da biblioteca do pequeno leitor façam parte textos de qualidade, textos do património tradicional, textos de temáticas atuais, textos com "temas sérios", textos com humor, poesia, narrativa, álbuns e livros-objeto.
Alguns dos temas presentes na atual literatura para a infância já foram sendo tratados neste espaço, como por exemplo as representações da infância, dos avós, do ambiente, do verão, da arte, da interculturalidade, entre outros. 

É importante procurar versões fidedignas dos contos tradicionais.
O diálogo entre o texto verbal e as boas ilustrações convidam a leituras plurais.


Quanto mais diversificarmos a oferta e sairmos de lugares comuns (como livros inspirados em séries e programas de televisão, ou adaptações redutoras de alguns clássicos com ilustrações estereotipadas), mais enriquecida ficará a enciclopédia literária do pequeno leitor. Dizemos pequeno, convictos, porém, de que a boa literatura de potencial receção leitora infantil se destina a todas as idades, como temos vindo a confirmar, ano após ano, através do Programa ELF.

Acreditamos na bondade dos livros e no seu potencial transformador. Continuaremos, pois, a alimentar estas duas ideias para que a leitura tenha sempre, mas neste momento em particular, um lugar especial em cada lar. 


Incluir os chamados temas difíceis ou fraturantes na biblioteca do pequeno leitor
 contribui para fomentar a reflexão sobre as grandes questões da humanidade.


Ao longo dos próximos dias apresentaremos, na nossa página de facebook e no nosso Instagram, algumas sugestões de leituras a integrar a seleção Vou para a escola: vou aprender a LER!

Desejamos a todos um bom ano letivo!
[LMB]

sábado, 25 de julho de 2020

Que avós povoam a atual literatura para a infância?

Porque os avós ocupam um lugar importante na vida dos netos, e os netos um lugar especial na vida dos avós, sendo capazes de estabelecer entre eles relações únicas, dominadas pela confiança e pela cumplicidade, com ganhos para ambas as partes, e porque se aproxima o Dia dos Avós, fizemos uma seleção de seis títulos, dos quais emergem algumas das representações dos avós na atual produção literária para a infância. 



A representação dos avós (e dos idosos) vai ganhando expressão enquanto tendência temática da atual literatura para a infância: questões como a sabedoria, a memória, o envelhecimento, a doença e até a morte fazem parte do vasto leque de publicações sobre o tema. 

Para comemorar esta efeméride, num ano invulgar, em que a relação (sobretudo de afetos) entre avós e netos também se viu confinada, escolhemos avós que partilham, de diferentes modos, o dia-a-dia com os seus netos. 
Equitativamente distribuídos por género: três avós e três avôs literários.

Pormenor do miolo de O Relógio da minha Avó

De forma mais ou menos explícita, a reflexão sobre a passagem do tempo, e o que fazemos com ele, marca presença em boa parte das obras sobre este tema. Em O Relógio da minha Avó, de Geraldine McCaughean e Stephen Lambert, esta é a questão central. 
Partindo da descoberta de um relógio de pé avariado, o neto narrador enceta um belíssimo percurso de descoberta de outros "relógios", que é também um caminho de aprendizagem do Belo, e um hino às pequenas coisas e aos pequenos gestos de cada dia, de cada estação... 

"A avó disse:
- Posso contar os segundos pelas batidas do meu coração. Já reparaste que os segundos passam mais depressa quando a vida é emocionante?"
(...)
"A vida, é claro, pode ser medida de maneiras diferentes: pelos aniversários, pelos amigos, pelo que possuis... ou pelo que recordas. Mas quando se tem muita sorte, como nós, e chegam os netos, sabes que a vida completou o seu círculo". (G. McCaughrean, 2005)

Pormenor do miolo de À Procura de Ontem

 Em À procura de ontem, de Alison Jay, uma obra recentemente chegada a Portugal (2020), encontramos um avô com uma inusitada missão: ajudar o seu neto a compreender que, embora as memórias tenham um lugar e um papel muito importante nas nossa vidas, o melhor dia é sempre o de HOJE.

"- Avô, ajudas-me a encontrar o caminho para ontem?
- Porque queres voltar para ontem?
- Porque foi o melhor dia de sempre, Avô!
- Foste feliz ontem, mas ainda virão muitos dias felizes. Deixa-me contar-te como foram alguns dos meus melhores dias." (A. Jay, 2020)


Pormenor do miolo de À Procura de Ontem


Em O Rosto da Avó, de Simona Ciaraolo, o tempo é percorrido em rugas, que contam histórias. No dia do seu aniversário, interpelada pela neta que julga ver um vislumbre de tristeza no seu rosto, a avó deste belíssimo álbum narrativo, que conjuga pequenos segmentos de texto com exuberantes ilustrações que o completam, oferece à neta um legado de histórias, a que correspondem memórias que marcaram a sua vida. 
Trata-se de um trabalho particularmente interessante na construção da memória afetiva, e no estreitamento de laços intergeracionais. Imaginar que os avós também já foram crianças, jovens rebeldes, que sofreram, mas que também riram até às lágrimas, apesar do grande valor que encerra, é uma tarefa pouco usual. Este álbum é um delicioso convite a (re)visitar a infância e a juventude dos avós, num genuíno gesto de aproximação àquilo que é a essência da natureza humana. 

"- E nestas [rugas]?
- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô." (S. Ciraolo, 2017)


Pormenor do miolo de O Rosto da Avó: resposta ilustrada ao segmento textual
 "- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô."

Pela mão de Rui Zink e Paula Delecave, vem a lume, também no presente ano (2020), O avô tem uma borracha na cabeça. Como facilmente se depreende pelo teor do título, trata-se de um trabalho de cunho fraturante, pela temática que aborda: as doenças associadas à perda da memória (neste caso concreto, a doença de Alzheimer).

Pormenor do miolo de O avô tem uma borracha na cabeça

De uma extraordonária delicadeza nas palavras, e de uma originalidade ímpar nas ilustrações, esta obra dá a conhecer, pela voz do narrador criança (o neto), uma forma possível de convívio com a doença. Desde o difícil momento de ouvir a explicação dos pais sobre o que se passa com o avô, passando pelo questionamento e pelas angústias próprias da impotência perante o inevitável, o neto desta história, recuperando as muitas histórias (memórias) que o avô lhe havia contado, encontra uma solução:

"O avô tem uma borracha na cabeça? 
Pois nós somos um lápis!" (R. Zink, 2020)

Pormenor do miolo de O Pássaro da Avó

O Pássaro da Avó é um dos mais recentes trabalhos de Benji Davies (2019). Protagonizado por uma das personagens mais conhecidas dos álbuns do autor, o pequeno Noé, este ternurento livro mostra-nos como os netos podem ter um papel transformador na vida dos avós. 
Com cheiro a maresia e sabor a algas, alternando entre cenários de azul e de tempestade, esta narrativa, que tem como pano de fundo emocional a solidão, é construída de uma sucessão de pequenos episódios (milagres?) capazes de expandir e preencher o universo solitário da avó.

"Quando a tempestade passou, os pássaros seguiram viagem. Só o pássaro do Noé não se queria ir embora.
- Acho que ele gosta de ti, Avó." (B. Davies, 2019)


Da autoria de Miguel Gouveia e Raquel Catalina (2019), chega-nos a extraordinária obra A Manta do José, uma adaptação de um conto da tradição judaica. Este pequeno (grande) livro, a que ousaríamos dar de subtítulo A arte de ressignificar, é um elogio à memória, à atribuição de sentidos e ao amor às coisas belas. 
O avô desta história é alfaiate e, quando o José nasceu, ofereceu-lhe uma manta, uma manta que se irá salvando sucessivamente do "destino fatal" de um "objeto velho", graças à arte transformadora da ressignificação, que o avô lhe imprime no seu ateliê, como quem cose um destino com pontos de afeto.

E quando parece não ser possível construir mais nada, pois a manta já havia sido transformada tantas vezes... eis que a história continua:

"Desta vez, o avô não disse nada depois de ter ouvido o José contar o que se tinha passado. O José estranhou aquele silêncio demorado, mas ficou ali à espera, porque quanto mais olhava para a cara do avô, mais lhe parecia que ele estava a medir, a cortar e a coser uma solução qualquer dentro da sua cabeça. E tinha razão, porque acabou por dizer:
- Sabes, José, afinal o botão não era um ponto final, porque acho que ainda temos aqui material suficiente para fazer..." (M. Gouveia, 2019).


Celebrar o dia dos avós é celebrar a vida, perpetuar a memória, e (re)escrever a própria história. Ou, como refere Afonso Cruz, é "combater a noite com canteiros".

"O meu avô passa muito tempo com as flores que tem no terraço.
Diz que quer combater a noite com canteiros."
(A. Cruz, 2019, in Paz traz Paz)

P.S.1: Também falamos de "livros com avós dentro" AQUI e AQUI.

P.S.2: Ao longo da última semana de julho, em jeito de homenagem aos avós, apresentaremos na nossa página de facebook e de instagram, uma sugestão diária de leituras sobre os Avós. Acompanhem-nos!