sábado, 20 de junho de 2020

Representações do Verão na Literatura para a Infância

"O verão é o tempo grande", quem o diz é Maria Isabel César Anjo, no título do pequeno volume dedicado a esta estação do ano. Concordamos: verão pede vagar, pede um olhar demorado sobre a beleza que nos rodeia, pede mergulhos no verde dos campos, das montanhas, das florestas, dos rios e regatos... e pede livros! 



Fomos em busca do verão num conjunto de obras de potencial receção leitora infantil e encontrámo-lo em registos de diferentes épocas: descobrimos que as representações do verão de Aquilino Ribeiro, por exemplo, encontram eco nas de António Mota, e que o verão cantado por Eugénio de Andrade parece ser retomado por Manuela Leitão e Catarina Correia Marques... e descobrimos também que há na literatura mensagens que são hinos à natureza, que nos podem ajudar a restabelecer o tão necessário equilíbrio que nasce do conhecimento e respeito pelos seus ciclos, pelas suas estações, pelo seu tempo, e sobretudo pela sua generosidade.


Na literatura para a infância ainda encontramos as Quatro Estações do Ano (cujos limites se vêm tornando cada vez menos nítidos no plano real). Talvez como afirmação, como necessidade de recordar que somos todos habitantes de um mesmo cosmos (que tem as suas leis), talvez como alerta, como indicação de um caminho mais ecocênctrico  (alternativo ao exagerado antropocentrismo que tem vindo a caracterizar a sociedade).


Pormenor do miolo de O verão é o tempo grande

Da enorme sensibilidade que jorra dos quatro pequenos volumes de Maria Isabel César Anjo e Maria Keil (imagens acima) ao diálogo de linguagens que convivem em As Quatro Estações, de José António Abad Varela e Emilio Urberuaga, obra inspirada no trabalho musical de Vivaldi (falamos deste texto AQUI), ao humor e à leve sátira aos tempos modernos, que caracteriza O Zé e as Estações, de Luísa Ducla Soares e Raquel Leitão, até à riqueza sensorial que encontramos em Poemas para as Quatro Estações, de Manuela Leitão e Catarina Correia Marques, são evidentes as preocupações em materializar elementos característicos de cada estação, que contemplam aspetos ligados à fauna, à flora, mas também às ações ou hábitos próprios de cada estação, apresentando-os de forma bem definida e distinta, sem perder de vista a ciclicidade da natureza.

Pormenor da obra O Zé e as Estações, onde é possível verificar a presença de informação relativa ao tempo, à fauna, à flora e também aos hábitos (férias, gelados...)
Por vezes este trabalho é feito de modo implícito (mas eficaz), pela mão do ilustrador, que ao cenário e à ação da narrativa vai acrescentando informação sobre o passar do tempo, através da caracterização da paisagem. É o caso de uma interessante adaptação do conto popular inglês A Galinha Ruiva, de Pilar Martinez e Marco Somà, como podemos ver nas imagens abaixo. 





As obras que versam explicitamente sobre as estações do ano não se limitam, todavia, à apresentação do lado mais agradável de cada estação. Por exemplo, em As quatro Estações, de José Antonio Abad Varela e Emilio Urberuaga, o verão faz-se acompanhar de uma típica "tempestade de verão": 

Pormenor da obra As quatro Estações: excerto que acompanha a composição de Vivaldi "Trovoada de Verão"

As típicas tempestades de verão já marcavam presença na obra de Aquilino Ribeiro destinada à infância. No seu célebre conto Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia (Arca de Noé III Classe), a tempestade que acaba por levar a abóbora rio abaixo até ao moinho, deixando o Sr. José Barnabé Pé de Jacaré consternado é um dos elementos do enredo que completa todo o cenário de verão em que decorre a história, e que concorre para o seu divertido desfecho:
"- José Barnabé?
- Ué?!!
- Seria aquele papa-moscas ou o eco? E deitou a correr. Foi encontrá-lo à beira do rio, de olhos fitos na corrente, como se estivesse à espera de um bacalhau.
- Mulher - exclamou - lá se foi a aboborinha!
- Ai foi?! Pois se foi, nem telhado nem panelinha!
Em seu desafogo, mestre grilo fazia à boca da lura, para cigarras, ralos, rãs, sapos, a histórias - a sua história - da catástrofe dum dia de verão:
- Cri-cri-cri! Muito me eu ri!!! Ci-cri-cri!..."

Pormenor do texto Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia
Já em O dia em que o regato secou, o trabalho de António Mota e Sebastião Peixoto que completa a trilogia protagonizada pelos coelhos Bitó, Fabi e D. Fofa (Onde está a minha mãe, de que falamos AQUI, tem como cenário a primavera, e A casa da janela azul, tem como pano de fundo o inverno), é possível conhecer os hábitos de verão de uma grande diversidade de pequenos seres, como o facto de se refugiarem em tocas para fugir ao calor, e encontrar as representações mais terríveis do verão, como a seca e os incêndios. Neste interessante trabalho, a "tempestade" de verão é claramente apresentada como uma bênção:
"- Chuva de verão, chuva de verão! - gritou a cabra cabrela muito feliz (...)"
Das palavras que encerram este texto parecem, aliás, ecoar as vozes ancestrais ligadas aos rituais e celebrações dos solstícios:
"Quando chegaram à toca, e viram que no lugar do muro havia muita água, juntaram-se aos bichos que ali festejavam, e também dançaram com muita alegria" (imagem abaixo).  

Dupla página final de O dia em que o regato secou

Amoras
"Doces e formosas,
Talvez por serem da família das rosas
Recolho-as sempre no regaço"

Os aromas e os sabores do verão marcam especial presença na poesia. A coletânea Poemas para as quatro Estações dedica ao verão seis poemas, quatro dos quais em torno dos frutos: A que cheira o verão?, Na esplanada, Figo e Amoras, "ensinando" ainda ao leitor Como fazer o melhor castelo de areia, e o caminho para conhecer A menina de Sophia.

Pormenor da obra Poemas para as quatro estações: Na esplanada.
Falamos sobre esta obra AQUI, a propósito da Primavera, onde apresentamos sugestões de atividades.

Este verão sumarento marca também presença na coletânea Conversas com Versos, de Maria Alberta Menéres e Rui Castro, no divertido poema O almoço dos pardais:

Pormenor da coletânea Conversas com Versos
A poesia canta também o calor do verão, numa espécie de convite a abrandar. Quem não se recorda, por exemplo, do célebre poema Verão de Eugénio de Andrade (imagem abaixo), que integra a obra Aquela Nuvem e Outras?  

Pormenor da obra Aquela nuvem e outras: Verão.
Ou d'O Livro de Marianinha, de Aquilino Ribeiro e Maria Keil:

"Da minha varanda, defronte,
na luzerna e trevo da fonte
pastavam novilho e cordeiro,
qual deles mais lambareiro.

A mãe ovelha ficara no bardo
a mãe-vaca puxava ao arado.

Eu via-os comer, saltar, vadiar
enquanto caía um sol de rachar.

Era meio verão
inda a flor do trambolhão,
que anda com a sesta,
e a vagem da giesta
não sentia da estiagem,
a ardente bafagem.

No prado, por esta altura
tudo é vida de doçura."

Para que nada falte ao nosso verão, podemos seguir o conselho dos habitantes da obra de António Mota:

Pormenor da obra O dia em que o regato secou
Ou podemos seguir com Leonoreta de Eugénio de Andrade:

"Canção de Leonoreta

Borboleta, borboleta,
flor do ar
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta
Que me não levas contigo."


Demos, então, as boas vindas ao verão. Celebremos com a ajuda dos livros e das mensagens que a literatura encerra 
(e até a chuva de verão ganhará um novo significado).


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Ideias para Festejar o dia de Portugal em Família

Hoje, dia de Portugal, trazemos algumas sugestões para enriquecer a comemoração desta data, a partir de um poema de José Jorge Letria, e de algumas experiências levadas a efeito no âmbito do Programa ELF.

Ilustração de Afonso Cruz para o texto Portugal
(O Alfabeto dos Países)
Partimos da obra O Alfabeto dos Países, de José Jorge Letria e Afonso Cruz, que se compõe de um poema para cada país, correspondente a cada letra do alfabeto, e escolhemos a letra P, a que corresponde o texto Portugal.

Texto Portugal
(O Alfabeto dos Países
)

Este texto, à semelhança de todos os que compõem esta coletânea, integra elementos de ordem geográfica, histórica e cultural, habilmente conjugados em forma de poesia, subtilmente pontuada com algumas notas de humor, convertendo o texto em material de reflexão para todas as idades.



Recuperamos, então, algumas das experiências resultantes das estratégias de abordagem propostas no âmbito do Programa ELF, que comprovam como o texto se pode revelar um manancial de conhecimento, e um indutor de experiências afetivas muito significativas.

Mapa das representações de Portugal
(Família Machado Domingues - ELF 2016)
1. Representações de Portugal



Este mapa das representações de Portugal congrega contributos de 50 amigos da família, espalhados pelo mundo, desafiados a responder ao desafio  “Qual a melhor palavra / imagem para simbolizar Portugal?”. Uma experiência que resultou em substanciais ganhos intertextuais, tendo em conta a quantidade e variedade de conhecimento que proporcionou.



Preencheram este retrato / puzzle do nosso país, visto de fora, elementos que se podem associar à música, como a figura de Amália Rodrigues e a guitarra portuguesa, aos monumentos, sobretudo de caráter religioso, ao desporto, à gastronomia, às festividades, ao artesanato, às paisagens, sobretudo do norte (como o Gerês), mas também às memórias de um país que ficou para trás e que deixou saudades. Curiosamente, a significativa expressão do Galo de Barcelos, levou a mãe participante em busca da lenda para contar às filhas. 
Uma ideia a recriar!


Ilustração alternativa para o texto Portugal
(Família Meireles - ELF 2016)
2. Ilustração Alternativa

Afonso Cruz recorreu à representação de um dos momentos / feitos mais emblemáticos da nossa história, os descobrimentos (que é apenas um dos aspetos referidos no poema). O trabalho representado na figura acima constitui uma alternativa à ilustração de Afonso Cruz. Trata-se da recuperação de alguns elementos culturais, lendários e gastronómicos, bem representativos da "portugalidade". 
Uma proposta ao alcance de qualquer família, que resultará num belo portefólio de Portugal.


Guardas da obra Alfabeto dos Países

3. Alfabeto de Portugal


Aproveitando o mote dos autores, e do título, e ajustando-o à efeméride que hoje comemoramos, vamos construir o Alfabeto de Portugal. Podemos escrever, desenhar, recorrer ao recorte e colagem; fazer alfabetos históricos, culturais, gastronómicos, festivos; mais sérios ou mais divertidos... a imaginação é o limite!

dupla página do miolo de O Alfabeto dos Países


4. Pelos caminhos de Portugal ou Um texto para a minha terra

Recuperando a sugestão do próprio autor, que convida o leitor a criar o seu próprio país, sugerimos a criação de um poema "ao jeito de..." sobre a terra de cada família. Será uma oportunidade para ir em busca de curiosidades históricas, culturais, do imaginário popular... e transformar essas descobertas num produto artístico! 

Façam-nos chegar os vossos trabalhos e as vossas descobertas. Partilharemos na nossa página de FB. Vamos inspirar-nos uns aos outros. 

Bom feriado e boas leituras!




sábado, 6 de junho de 2020

Representações do Ambiente na Literatura para a Infância | Novidades 2020

Comemoramos ontem mais um Dia Mundial do Ambiente, uma efeméride que deverá servir sobretudo para refletirmos e repensarmos comportamentos e condutas. Não há (mesmo) Planeta B.

Abundam na Literatura para a Infância, principalmente depois do prémio ambiente na literatura (1975), publicações que versam sobre a temática ambiental. Ora privilegiando uma via mais contemplativa, ora ingressando em terreno mais proativo, as questões da ecoliteracia assumem várias formas na literatura de potencial receção leitora infantil.



Escolhemos para hoje quatro obras novíssimas, editadas em Portugal em 2020, que possibilitam interessantes reflexões e proveitosos caminhos de leitura: um feliz encontro entre o prazer de ler e o de habitar uma Casa tão generosa.

O Bando, a história de uma guardiã de árvores, uma criação de autoria única, de Gemma Koomen, editado pela Fábula, é um trabalho belíssimo que nos remete para o universo dos pequenos seres que habitam os "mundos elementares" (1). Começa assim:

"Na orla da floresta existe uma grande árvore. Se espreitares por entre os seus ramos talvez consigas ver algumas pessoas pequeninas, da altura do teu polegar e com a cabeça do tamanho de uma avelã. São os Guardiões das Árvores."

Dupla página do miolo de O Bando
Neste álbum, somos convidados a acompanhar a viagem de uma pequena guardiã, a Sílvia, e a travar amizade com Tufo, o passarinho bebé "barulhento, desarrumado, e que está sempre esfomeado" com quem Sílvia irá ver o mundo, aprender a dizer adeus e descobrir a alegria da amizade.

Contracapa de O Bando

Do inconfundível Eric Carle, chega a Portugal, editada pela Kalandraka, A Pequena Semente, uma obra que retoma o tema dos ciclos da natureza, materializado nas estações do ano que servem de cenário à narrativa, e que trazem ao de cima questões como a resiliência, o saber esperar, o "invisível aos olhos". 


Uma obra que encontra eco em trabalhos como Cem sementes que voaram  e Começa numa semente, de que falamos AQUI, em Ainda Nada, de Christian Voltz, e também, de certo modo, em A maior Flor do Mundo, de José Saramago. O acompanhamento da vida da pequena semente, que o leitor é convidado a fazer, culmina no "eterno retorno" tão presente nestas questões:

"O vento sopra mais forte. A flor perdeu quase todas as suas pétalas. Ela agita-se e desvia-se do vento, mas ele sopra cada vez mais forte e abana a flor. O vento torna a abanar a flor e, desta vez, o seu ovário abre-se. Lá de dentro saem muitas pequenas sementes que rapidamente esvoaçam pelos ares, levadas pelo vento."

Pela Orfeu Negro, chega A Abelha, de Kirsten Hall e Isabelle Arsenault, um livro cor de mel, perfumado com o aroma de flores do campo. Um livro para ler como quem dança, acompanhando os "passos" da sábia e laboriosa orquestra apícola.  

"Começa a dança.
Remexe,
balança.
Que grande pagode!
Estremece,
sacode.

Agora o comboio, em fila indiana,
depois faz um oito, abana e abana.
(...)"

Dupla página do miolo de A Abelha
Este álbum, além de uma delícia para os olhos, é uma excelente forma de aproximação a questões tão importantes como a preservação das espécies. Em jeito de "compêndio", o livro integra uma página informativa, dirigida ao leitor, com curiosidades sobre as abelhas e ainda com um conjunto de sugestões sobre "Como ajudar as abelhas".

"Compêndio Informativo" que integra a obra A Abelha
E, por último, nascido em Portugal, A menina que queria desenhar o mundo, um livro de Adélia Carvalho e Sérgio Condeço, editado pela Nuvem de Letras. Imersa numa visão de interdependência (uma visão ecológica, na verdadeira aceção do termo), esta obra convida a aguçar o olhar sobre o que nos rodeia, do mais próximo ao mais longínquo, desde a "árvore que só crescia se não estivessem a olhar para ela", passando pelos "dias que parecem noites e pelas noites que parecem dias", até "aos amigos que moram em países distantes", a menina que queria desenhar o mundo guia o (pequeno) leitor numa viagem de auto e hetero descoberta, que culmina na palavra mágica "Nós".

Dupla página do miolo de A menina que queria desenhar o mundo

A Literatura em geral, e a Literatura para a Infância em particular, é um espaço de reflexão, que, não mudando o mundo, opera mudanças nas pessoas que o podem mudar! Cuidar desta Casa tão generosa é tarefa de Todos e de cada Um (os livros dão uma ajuda). 

(1) Esta expressão é retirada do subtítulo da obra de Cristina Carvalho (2011) Lusco-fusco, Breviário dos Mundos Elementares.



sábado, 30 de maio de 2020

Representações da Criança na Literatura para a Infância

A crianças é uma presença assídua na literatura infantojuvenil. O nosso imaginário encontra-se povoado de pequenos heróis que saíram dos contos populares, como a menina do Capuchinho Vermelho, a Cinderela, o João Pé de Feijão, Hansel e Grettel..., ou de clássicos da LIJ: quem não se recorda de Pippi das Meias Altas, do Principezinho, de Peter Pan, de Heidi, ou da incontornável Alice?... O que não é de estranhar, se atendermos ao destinatário preferencial destas produções e ao papel formativo que a LIJ sempre assumiu.

Hoje propomos uma visita a algumas obras contemporâneas para conhecermos as crianças que as habitam. Selecionamos um conjunto de livros que nos permitem conhecer diferentes representações da infância na atual produção literária a ela destinada.


Na literatura encontramos a criança associada à candura, à inocência, ao sonho... mas também ao sofrimento, à pobreza e à solidão. Encontramos a criança a protagonizar narrativas conducentes ao conhecimento da riqueza da diversidade, e a criança inconformada que constrói um mundo melhor. E também encontramos a criança com profissão de criança, que brinca e "prega partidas". E ainda aquela que conhece e compreende a magia que a beleza das pequenas coisas pode operar.

Pormenores do miolo das obras O Livro da Tila e O Palhaço Verde,
de Matilde Rosa Araújo

Matilde Rosa Araújo, um nome maior da literatura infantil portuguesa, com fortes ecos de Andersen, tratou a infância com uma enorme sensibilidade, não se escusando a expor a vulnerabilidade e sofrimento infantis. A prová-lo estão, por exemplo, 
poemas como "Canção de embalar Bonequinhas Pobres", ou "Chuvinha de Maio", que podemos encontrar em O Livro da Tila, ou a obra O Palhaço Verde, onde a solidão da orfandade vai sendo preenchida pela alegria das pequenas coisas,

"-Senhor Palhaço, tem aqui o seu quarto! Venha ver!
Era um pequeno espaço, por detrás de um biombo, com uma cama de ferro branca, coberta com uma manta de bocadinhos de chita e muitas cores, todos unidos a ponto miúdo por Dona Esperancinha.
-Ih! que lindo! - disse o Palhaço. - Parece um campo de flores!
Que importava ter só aquela cama de chita se para o palhaço ela era mesmo um campo de flores?" (in O Palhaço Verde de Matilde Rosa Araújo)

Pormenor do miolo de Allumette

A infância sofrida de Andersen é revisitada em Allumette de Tomi Ungerer, uma reescrita de "A menina dos fósforos". Allumette, a protagonista desta narrativa, não se resigna, contudo, à miséria e à pobreza que lhe calharam em sorte, antes manifesta um tão grande desejo de viver, que a força deste parece precipitar a abundância que o céu, literalmente, lhe envia, e que vem mudar o curso da narrativa. Ao contrário da menina de Andersen, a inconformada Allumette resiste, de forma corajosa e empreendedora, ensinando aos "poderosos" da cidade uma valiosa lição.

três obras que convidam ao conhecimento da diversidade
São vários os textos protagonizados por crianças de diferentes raças, obras que materializam a riqueza da diversidade, e que são um convite a conhecer o mundo e a dialogar com o Outro. As crianças que habitam nestas três obras são africanas e protagonizam narrativas bem distintas. 
Adjoa é a heroína e a narradora de Endireita-te, um livro da autoria de Rémi Courgeon, editado muito recentemente em Portugal (2020), pelo Orfeu Negro. Adjoa recua à infância e partilha a sua história, que começa assim:

Pormenor das primeiras páginas do miolo

 "-Adjoa, endireita-te! Quantas vezes na vida ouvi eu esta frase, esta canção? Quantas vezes a mãe, a avó e as tias ma cantaram? Quantas vezes na vida as meninas, as raparigas e as mulheres a escutaram? Aqui em Djougou, para que uma menina cresça, põem -lhe coisas na cabeça. Coisas que ela não pode deixar cair  e que tem de erguer para o céu. Quanto mais ela cresce, mais pesadas são. (...)
Toda a vida levei à cabeça cabaças, baldes, jerricãs, milho, desgostos, gasolina, dois coelhos numa gaiola, uma panela de pressão, um segredo difícil de guardar, uma prótese, um grande rádio cheio de canções, latas, bacias, lenha, invejazinhas bicudas (...)"

Karim é o menino que percorre as páginas de Árvores no Caminho, de Régine Garcia e Vanina Starckoff. Neste álbum narrativo, que tem como cenários o mercado (inspirado no mercado de Burkina Faso) e a savana, a criança levada pela curiosidade e pela aventura, próprias da infância, perde-se da mãe, sendo amparada e guiada pelas árvores que encontra no caminho: um hino ao amor e às origens.

Pormenor do miolo de Árvores no Caminho
Handa é a menina que quer surpreender a sua amiga Akeio, enchendo um cesto com exóticas frutas coloridas. Mora na história A Surpresa de Handa, de Eillen Browne, e além de ser uma verdadeira surpresa (para Handa e para Akeio), é um divertido, delicioso e sumarento passeio pela fauna e flora africanas. Este belo álbum está disponível nos áudiolivros do Letra Pequena:


O património popular é igualmente rico em representações da infância, como o provam, por exemplo, os trava línguas, as lengalengas ou as canções de embalar: registos que encerram, quase sempre, uma grande carga afetiva, como podemos ver no exemplo retirado da coletânea O som das Lengalengas, de Luísa Ducla Soares, João Vaz de Carvalho e Daniel Completo:

Pormenor do miolo de O som das lengalengas: "Canção de Embalar"

O olhar límpido e a natural empatia para com a beleza, característicos da infância, são evidente no álbum sem palavras Flores Mágicas, de Jon Arno Lawson e Sydney Smith. O poder transformador de pequenos gestos levados a efeito pela menina que protagoniza esta obra, e que passam despercebidos ao adulto que a acompanha, é um dos caminhos a percorrer neste maravilhoso álbum. 
Efetivamente, é esse olhar que capta o belo que torna a criança literária capaz de descobertas e aventuras que sintonizam na perfeição com a linguagem das flores e dos pequenos seres: quem não se recorda, a propósito, da pequena Isabel, que mora n'A Floresta de Sophia?


Pormenor do miolo de Flores Mágicas
A criança com profissão de criança, dada às descobertas e traquinices típicas deste período da vida, é também presença regular na atual literatura para a infância. Selecionamos, a propósito, dois exemplos representativos do panorama nacional e internacional. De fora vem Tomás o Traquinas, um livro bem disposto, escrito por Jorge Rico Ródenas e ilustrado pour Laura Cantone, dona de um estilo único, marcado pela exuberância da imagem. De dentro, trazemos um divertidíssimo trabalho de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, És mesmo tu?


O humor que percorre estes livros é um hino ao riso salutar e à gargalhada espontânea, tão típicos da infância, não lhes retirando, contudo, o poder de entrar subtilmente em universos de algum modo fraturantes, igualmente típicos da infância.

Pormenor do miolo de Tomás o Traquinas

Pormenor do miolo de És mesmo tu?
Estas obras, pela ludicidade de que se revestem, constituem também um convite à brincadeira. Podemos experimentar, em família, criar "partidas" como as do Tomás, brincando com as palavras e com a imaginação, ou então fazer um elenco de "alcunhas a rimar" ao jeito do álbum do Planeta Tangerina. São atividades que favorecem o conhecimento e a valorização do património familiar e etnográfico.  
Em jeito de boas vindas às crianças que regressam no seu dia ao Jardim de Infância, aqui ficam Tomás o Traquinas e És mesmo tu?


(vídeo apenas disponível para uso interno)

Boas leituras!

sábado, 23 de maio de 2020

As representações da Arte na Literatura para a Infância

Comemoramos a 18 de maio o dia internacional dos museus, lugares de encontro com a memória e com a arte. Embalados pela efeméride, decidimos ir em busca de representações da arte na literatura de potencial receção leitora infantil.


As diferentes formas de arte manifestam-se de distintos modos na literatura, que é também uma forma de arte, o que torna estes livros particularmente ricos em termos de diálogos intertextuais, intersemióticos e interartísticos.



Inspirada nos movimentos modernos expressionistas, e partindo da célebre pintura  de Franz Marc, a obra O artista que pintou um cavalo azul, de Eric Carle, é exemplo das representações da pintura na atual literatura para a infância. Ao mesmo tempo que constitui uma homenagem ao artista, apresenta-se como um hino à liberdade do ato de criar. 


Paratexto final:
pintura de Franz Mark, e nota biográfica do pintor e do autor.

A temática animal é também a inspiração do inusitado Caderno de Animalista, de Antón Fortes e Maurízio A. C. Quarelo. Neste trabalho, os autores convocam um conjunto de obras célebres do século XX, transformando-as em novas obras de arte, que se fazem acompanhar por composições textuais muito originais.



O jogo começa na capa, com a Cadela von Dálmata, uma recriação de Sylvia von Harden, de Otto Dix, e segue no interior por "retratos animalistas" inspirados em obras como O Grito de Edvard Munch, que dá origem a O Guincho, O Beijo, de Gustav Klint... culminado em Ceci n'est pas une pipe, o célebre trabalho de René Magritte, que deu origem a Ceci n'est pas un escargot (imagem abaixo).

última página de Caderno de Animalista

Trata-se de um excelente livro para ser degustado, primeiro por leitores autónomos, e depois pelos pequenos leitores, acompanhados pelo mediador, que os guiará na descoberta dos intertextos escondidos. Poderá constituir uma excelente ferramenta de descoberta da arte. A Rita Pimenta fala deste livro AQUI, e a Ana Margarida Ramos apresenta uma interessante resenha do mesmo na Casa da leitura. No Blogue Revolta da Freixa também se fala desta obra.

Quanto a nós, que, para além da vertente reflexiva gostamos também de explorar a vertente lúdica e criativa da literatura, aproveitamos a dica de Magritte e propomos ao pequeno (e grande) leitor um jogo, que além o ajudar, naturalmente, a descobrir "o que é a arte?", permite-lhe experimentar a força e o poder de olhar de novo, ou olhar sob um prisma diferente para as coisas do dia a dia.



Ora, afinal, isto é, ou não é, um cachimbo? O diálogo em torno desta questão levará à resposta de que, efetivamente, não é um cachimbo, mas uma representação do mesmo... 
Mas... não sendo um cachimbo, podemos, então, transformá-lo noutro objeto. O jogo consiste em manusear a imagem, virando-a em diferentes posições, ocultando parte da imagem..., e a criar leituras diferentes. Esta dinâmica já originou respostas como "um escorrega, uma rampa, um vaso, um sapato, um suporte de casacos... e até um apagador de velas!": é um jogo muito interessante, no qual podem participar todos os membros da família, e ao qual parece ter recorrido também Josse Goffin, autora dos livros sem palavras OH! e AH!

Álbum OH!: Dupla página do interior, ainda com uma aba página oculta,
 evoca o Cachimbo de Magritte

Álbum OH!: Ao abrirmos a página oculta, ficamos com uma tripla página
 que nos revela a "transformação" do cachimbo.

Já no álbum AH!, a autora, recorrendo ao mesmo jogo, enriquece o trabalho com a inclusão de uma obra de arte explícita, em cada uma das triplas páginas. Estas obras de arte, maioritariamente ligadas ao universo da pintura e da escultura, convivem harmoniosamente com objetos ligados à vida do artista, como o pincel ou a tinta, e dialogam, simultaneamente, com outras linguagens, como o cinema ou a literatura, como podemos observar no exemplo abaixo:

AH!: tripla página do miolo 

Assistimos aqui a um interessante diálogo entre a sétima arte (evocada pela luz), a pintura, de Picasso, e a literatura, materializada nas personagens da Fábula O Corvo e a Raposa, sujeita a uma certa subversão: o queijo que cai do bico do corvo não é consequência do elogio astucioso da raposa, mas antes, do deslumbramento perante o Retrato de Marie-Thérèse.
Em jeito de compêndio de arte, este álbum é enriquecido com informação complementar, na contracapa, sobre todas as obras de arte evocadas no seu interior:

AH!: Contracapa



  
Na Literatura para a Infância, encontramos também registos que dialogam com a música, de que são exemplo As Quatro Estações e Quadros de uma Exposição, duas obras inspiradas nas peças musicais de Vivaldi e Mussorgsky, respetivamente. Em torno da música, é criada uma narrativa textual, acompanhada de uma componente pictórica, que, combinadas com a música que acompanha o livro, resultam em experiências sensoriais muito ricas. Já falamos destas obras noutros lugares, indicados nas legendas abaixo.


Esta obra integrou o Programa ELF (falamos dela aqui)

Falamos desta obra AQUI

Estas obras, para além da riqueza intertual, são um convite a conhecer grandes autores da música erudita, a conhecer lugares de encontro com a arte, e ainda a conviver com elementos do imaginário popular universal, como acontece em Quadros de uma Exposição:


(versão integral apenas disponível para uso interno, 
sala de aula e biblioteca escolar)


A arte materializa-se, também, na atual edição para a infância em livros que são verdadeiros objetos artísticos, como é o caso dos livros pop-up, e de que é exemplo este trabalho de Marco Taylor: O homem coração de choupo, o primeiro pop-up inteiramente português:



O homem coração de choupo: dupla página do pop-up

A tridimensionalidade da obra confere-lhe o estatuto de livro-objeto, um produto estético em franca expansão no universo da literatura que já não se destina, exclusivamente, à infância. Este reforço da materialidade do livro é um convite a que o leitor se detenha e se incorpore na eventual narrativa, se sinta parte integrante do diálogo artístico.


Por último,  as biografias romanceadas, que são outra forma de incorporação da arte nos livros de potencial receção leitora infantil e juvenil. A título de exemplo, selecionamos Nadir Afonso, o pintor de cidades geométricas, um livro de Raquel Ramos, que é um convite a conhecer a vida e a obra do artista transmontano evocado.



Incorporar a arte, nas suas diferentes manifestações, no dia a dia de cada um de nós, a começar pelo universo familiar, lugar das mais importantes aprendizagens, mais do que necessário, é urgente. É urgente resgatar os saberes artísticos e humanísticos, como antídoto contra o aceleramento e consumo desenfreados, como nos recorda Nuccio Ordine (2016) no seu célebre manifesto A Utilidade do Inútil:

“Custa-nos ver homens e mulheres entregues a uma corrida louca em direção à terra prometida do lucro, onde tudo aquilo que os rodeia – a natureza, os objetos, ou outros seres humanos – não suscita o menor interesse. O olhar fixo no objetivo de alcançar não lhes permite colher a alegria dos pequenos gestos quotidianos e descobrir a beleza que pulsa nas nossas vidas, num pôr-de-sol, num céu estrelado, na ternura de um beijo, numa flor a desabrochar, numa borboleta a voar, no sorriso de uma criança. Pois, muitas vezes é nas coisas mais simples que se sente a grandeza.”

Para saber mais, sugestões não faltam!

sábado, 16 de maio de 2020

As histórias fazem bem - Eduardo Sá

O psicólogo Eduardo Sá apresenta, com a simplicidade que o caracteriza, um conjunto de vantagens sobre a leitura de histórias de pais para filhos, desmistificando muitas das questões em torno dos livros e do ato de ler com e para crianças.



O autor já havia saído em defesa das histórias, dos livros e da leitura, no seu Manifesto contra as histórias. "Deixem-se de histórias, e contem histórias..." Vale a pena ler!