quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Vou para a escola: vou aprender a ler!

Esta é, sem dúvida, a resposta mais ouvida pelas crianças que se preparam para ingressar no 1º ciclo do ensino básico, quando questionadas sobre o que vão fazer na escola. Deixando para trás as salas de jardim de infância (ou as casas dos avós...), iniciam agora o seu percurso escolar formal.  

Os livros falam de tudo!
É importante que da biblioteca do pequeno leitor façam parte alguns clássicos,
que conviverão harmoniosamente com obras contemporâneas.



A criança tem, neste momento, grandes expectativas em relação à leitura. Aprender a ler vai dar-lhe acesso a um mundo novo: penetrar no universo das histórias, decifrar legendas de programas televisivos ou digitais, descobrir instruções de jogos, etc. 

Todavia, a aprendizagem formal da leitura é um processo longo (e nem sempre fácil). É frequente, nesta fase, que pais e professores se angustiem, e que a própria criança (cheia de expectativas)  se sinta, por vezes, dececionada.
Esta é, portanto, uma fase extremamente delicada, pois a obsessão pela aprendizagem da decifração (muitas vezes por parte dos adultos) pode comprometer seriamente a aprendizagem e o desenvolvimento do gosto pela leitura, e a consequente formação do leitor.

Partilhamos, neste sentido, duas ideias (muito fáceis de pôr em prática) que em muito poderão contribuir para tornar este momento mais tranquilo, e para fazer germinar e crescer as sementes do amor ao livro e à leitura.

A poesia deve continuar a fazer parte das leituras com a criança.
(Excerto de A Casa da Poesia, de José Jorge Letria e Rui Castro)




1. Continuar a ler, gratuitamente e diariamente, para as crianças.

É fundamental que pais e professores continuem a alimentar o gosto e o prazer de ler.
Pode, de facto, ser uma tentação deixar de ler à criança, sob pretexto de que "ela agora já sabe ler". Mas, na verdade, não sabe. Aprender a ler é um processo demorado que comporta a aprendizagem de todo um código e das suas diferentes combinações (a fase da decifração). Até que a criança domine esse código, de modo a poder ler com a velocidade suficiente que lhe permita compreender o que lê, decorrem vários meses, muitas vezes em número superior a um ano letivo. 

Se à criança que vinha habituada a ouvir ler, pela voz do educador no jardim de infância, ou dos pais na hora de deitar, tendo garantido o seu aporte diário de alimento do imaginário, lhe é retirado esse momento de graça, a imagem da leitura vai ficar reduzida a um amálgama de textos soltos do manual escolar, compostos intencionalmente para o ensino da decifração, aos quais falta um enredo, um fio narrativo sólido, uma alma. Se a par do ensino da decifração, deixarmos de ensinar o gosto, de juntar afeto, a leitura depressa se transformará numa atividade aborrecida e sem grande sentido.

Associar momentos lúdicos à leitura contribui para lhe conferir um
caráter divertido, para associar memórias positivas ao ato de ler.
Os livros-objeto são uma tendência da atual produção literária para a infância.


Continuar a ler para e com a criança depois da entrada no ensino formal, e ao longo de todo o percurso do 1º ciclo, é garantir que o imaginário e a enciclopédia literária do leitor em formação continuam a ser alimentados. E é também uma oportunidade única de estreitar laços afetivos.

Não podemos deixar de recordar, a este propósito, o célebre trabalho de Daniel Pennac Como um Romance, onde o autor, sem complacências, apresenta um retrato bastante fiel deste momento crítico:

"Que grande traição!
Ele, a leitura e nós próprios formávamos uma Trindade todas as noites reconciliada; agora, ele está sozinho perante um livro que lhe é hostil.
A leveza das nossas frases libertava-o do peso; agora, a indecifrável agitação das letras sufoca-o a tal ponto que até o impede de sonhar.
Nós tínhamo-lo iniciado na vertical; agora ele está esmagado pela imensidão do esforço. 
(...)
Éramos os contadores, passamos a ser os contabilistas."
Pennac, 2003: 48-50 [1ª ed. 1991]

 

Daniel Pennac: Como um Romance e Les droits du Lecteur. 
Altamente recomendado para mediadores de leitura, sobretudo nesta fase.

2. Selecionar bons livros

A produção literária para a infância oferece hoje um manancial de temas e de discursos muito variados. É importante que da biblioteca do pequeno leitor façam parte textos de qualidade, textos do património tradicional, textos de temáticas atuais, textos com "temas sérios", textos com humor, poesia, narrativa, álbuns e livros-objeto.
Alguns dos temas presentes na atual literatura para a infância já foram sendo tratados neste espaço, como por exemplo as representações da infância, dos avós, do ambiente, do verão, da arte, da interculturalidade, entre outros. 

É importante procurar versões fidedignas dos contos tradicionais.
O diálogo entre o texto verbal e as boas ilustrações convidam a leituras plurais.


Quanto mais diversificarmos a oferta e sairmos de lugares comuns (como livros inspirados em séries e programas de televisão, ou adaptações redutoras de alguns clássicos com ilustrações estereotipadas), mais enriquecida ficará a enciclopédia literária do pequeno leitor. Dizemos pequeno, convictos, porém, de que a boa literatura de potencial receção leitora infantil se destina a todas as idades, como temos vindo a confirmar, ano após ano, através do Programa ELF.

Acreditamos na bondade dos livros e no seu potencial transformador. Continuaremos, pois, a alimentar estas duas ideias para que a leitura tenha sempre, mas neste momento em particular, um lugar especial em cada lar. 


Incluir os chamados temas difíceis ou fraturantes na biblioteca do pequeno leitor
 contribui para fomentar a reflexão sobre as grandes questões da humanidade.


Ao longo dos próximos dias apresentaremos, na nossa página de facebook e no nosso Instagram, algumas sugestões de leituras a integrar a seleção Vou para a escola: vou aprender a LER!

Desejamos a todos um bom ano letivo!
[LMB]

sábado, 25 de julho de 2020

Que avós povoam a atual literatura para a infância?

Porque os avós ocupam um lugar importante na vida dos netos, e os netos um lugar especial na vida dos avós, sendo capazes de estabelecer entre eles relações únicas, dominadas pela confiança e pela cumplicidade, com ganhos para ambas as partes, e porque se aproxima o Dia dos Avós, fizemos uma seleção de seis títulos, dos quais emergem algumas das representações dos avós na atual produção literária para a infância. 



A representação dos avós (e dos idosos) vai ganhando expressão enquanto tendência temática da atual literatura para a infância: questões como a sabedoria, a memória, o envelhecimento, a doença e até a morte fazem parte do vasto leque de publicações sobre o tema. 

Para comemorar esta efeméride, num ano invulgar, em que a relação (sobretudo de afetos) entre avós e netos também se viu confinada, escolhemos avós que partilham, de diferentes modos, o dia-a-dia com os seus netos. 
Equitativamente distribuídos por género: três avós e três avôs literários.

Pormenor do miolo de O Relógio da minha Avó

De forma mais ou menos explícita, a reflexão sobre a passagem do tempo, e o que fazemos com ele, marca presença em boa parte das obras sobre este tema. Em O Relógio da minha Avó, de Geraldine McCaughean e Stephen Lambert, esta é a questão central. 
Partindo da descoberta de um relógio de pé avariado, o neto narrador enceta um belíssimo percurso de descoberta de outros "relógios", que é também um caminho de aprendizagem do Belo, e um hino às pequenas coisas e aos pequenos gestos de cada dia, de cada estação... 

"A avó disse:
- Posso contar os segundos pelas batidas do meu coração. Já reparaste que os segundos passam mais depressa quando a vida é emocionante?"
(...)
"A vida, é claro, pode ser medida de maneiras diferentes: pelos aniversários, pelos amigos, pelo que possuis... ou pelo que recordas. Mas quando se tem muita sorte, como nós, e chegam os netos, sabes que a vida completou o seu círculo". (G. McCaughrean, 2005)

Pormenor do miolo de À Procura de Ontem

 Em À procura de ontem, de Alison Jay, uma obra recentemente chegada a Portugal (2020), encontramos um avô com uma inusitada missão: ajudar o seu neto a compreender que, embora as memórias tenham um lugar e um papel muito importante nas nossa vidas, o melhor dia é sempre o de HOJE.

"- Avô, ajudas-me a encontrar o caminho para ontem?
- Porque queres voltar para ontem?
- Porque foi o melhor dia de sempre, Avô!
- Foste feliz ontem, mas ainda virão muitos dias felizes. Deixa-me contar-te como foram alguns dos meus melhores dias." (A. Jay, 2020)


Pormenor do miolo de À Procura de Ontem


Em O Rosto da Avó, de Simona Ciaraolo, o tempo é percorrido em rugas, que contam histórias. No dia do seu aniversário, interpelada pela neta que julga ver um vislumbre de tristeza no seu rosto, a avó deste belíssimo álbum narrativo, que conjuga pequenos segmentos de texto com exuberantes ilustrações que o completam, oferece à neta um legado de histórias, a que correspondem memórias que marcaram a sua vida. 
Trata-se de um trabalho particularmente interessante na construção da memória afetiva, e no estreitamento de laços intergeracionais. Imaginar que os avós também já foram crianças, jovens rebeldes, que sofreram, mas que também riram até às lágrimas, apesar do grande valor que encerra, é uma tarefa pouco usual. Este álbum é um delicioso convite a (re)visitar a infância e a juventude dos avós, num genuíno gesto de aproximação àquilo que é a essência da natureza humana. 

"- E nestas [rugas]?
- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô." (S. Ciraolo, 2017)


Pormenor do miolo de O Rosto da Avó: resposta ilustrada ao segmento textual
 "- Ah, nessas está a noite em que conheci o teu avô."

Pela mão de Rui Zink e Paula Delecave, vem a lume, também no presente ano (2020), O avô tem uma borracha na cabeça. Como facilmente se depreende pelo teor do título, trata-se de um trabalho de cunho fraturante, pela temática que aborda: as doenças associadas à perda da memória (neste caso concreto, a doença de Alzheimer).

Pormenor do miolo de O avô tem uma borracha na cabeça

De uma extraordonária delicadeza nas palavras, e de uma originalidade ímpar nas ilustrações, esta obra dá a conhecer, pela voz do narrador criança (o neto), uma forma possível de convívio com a doença. Desde o difícil momento de ouvir a explicação dos pais sobre o que se passa com o avô, passando pelo questionamento e pelas angústias próprias da impotência perante o inevitável, o neto desta história, recuperando as muitas histórias (memórias) que o avô lhe havia contado, encontra uma solução:

"O avô tem uma borracha na cabeça? 
Pois nós somos um lápis!" (R. Zink, 2020)

Pormenor do miolo de O Pássaro da Avó

O Pássaro da Avó é um dos mais recentes trabalhos de Benji Davies (2019). Protagonizado por uma das personagens mais conhecidas dos álbuns do autor, o pequeno Noé, este ternurento livro mostra-nos como os netos podem ter um papel transformador na vida dos avós. 
Com cheiro a maresia e sabor a algas, alternando entre cenários de azul e de tempestade, esta narrativa, que tem como pano de fundo emocional a solidão, é construída de uma sucessão de pequenos episódios (milagres?) capazes de expandir e preencher o universo solitário da avó.

"Quando a tempestade passou, os pássaros seguiram viagem. Só o pássaro do Noé não se queria ir embora.
- Acho que ele gosta de ti, Avó." (B. Davies, 2019)


Da autoria de Miguel Gouveia e Raquel Catalina (2019), chega-nos a extraordinária obra A Manta do José, uma adaptação de um conto da tradição judaica. Este pequeno (grande) livro, a que ousaríamos dar de subtítulo A arte de ressignificar, é um elogio à memória, à atribuição de sentidos e ao amor às coisas belas. 
O avô desta história é alfaiate e, quando o José nasceu, ofereceu-lhe uma manta, uma manta que se irá salvando sucessivamente do "destino fatal" de um "objeto velho", graças à arte transformadora da ressignificação, que o avô lhe imprime no seu ateliê, como quem cose um destino com pontos de afeto.

E quando parece não ser possível construir mais nada, pois a manta já havia sido transformada tantas vezes... eis que a história continua:

"Desta vez, o avô não disse nada depois de ter ouvido o José contar o que se tinha passado. O José estranhou aquele silêncio demorado, mas ficou ali à espera, porque quanto mais olhava para a cara do avô, mais lhe parecia que ele estava a medir, a cortar e a coser uma solução qualquer dentro da sua cabeça. E tinha razão, porque acabou por dizer:
- Sabes, José, afinal o botão não era um ponto final, porque acho que ainda temos aqui material suficiente para fazer..." (M. Gouveia, 2019).


Celebrar o dia dos avós é celebrar a vida, perpetuar a memória, e (re)escrever a própria história. Ou, como refere Afonso Cruz, é "combater a noite com canteiros".

"O meu avô passa muito tempo com as flores que tem no terraço.
Diz que quer combater a noite com canteiros."
(A. Cruz, 2019, in Paz traz Paz)

P.S.1: Também falamos de "livros com avós dentro" AQUI e AQUI.

P.S.2: Ao longo da última semana de julho, em jeito de homenagem aos avós, apresentaremos na nossa página de facebook e de instagram, uma sugestão diária de leituras sobre os Avós. Acompanhem-nos!




terça-feira, 14 de julho de 2020

Livros que convidam a percorrer o mundo

Nestas férias as viagens "reais" estão condicionadas. Mas as viagens proporcionadas pelos livros e pela leitura, não estão. Vamos tornar o nosso verão inesquecível, percorrendo o mundo com "Livros para ler com um globo ao pé".

Seleção literária para ler em família "com um globo ao pé"
  
Daniel Willingham (2016), autor de Formando Niños Lectores, no capítulo que intitula de “Acumular conocimientos para el futuro” (Willingham, 2016: 99-118), aconselha vivamente os pais a investir na compra de um globo: “Compra un globo terráqueo. Los globos terráqueos parecen una cosa anticuada en la era de Internet, y no son baratos; (...) Pero creo que son una buena inversión. No hay ningún sustituto para un globo terráqueo a la hora de ofrecer a tu hijo el sentido de la distancia geográfica. Y tu hijo hará descubrimientos sorprendentes durante años” (Willingham, 2016: 117).

Recursos que potenciam a leitura de obras literárias de índole intercultural:
"livro-globo" e dicionário por imagens das crianças do mundo.
Efetivamente, a nossa experiência no âmbito do programa ELF vem comprovando esse facto. A atual produção literária para a infância é pródiga em publicações que versam sobre temáticas ligadas à Interculturalidade e à Alteridade, leituras que se completam e que abrem novos horizontes de saber e de sentir com recurso a globos, planisférios, mapas, pequenas enciclopédias ou dicionários temáticos, etc.  
Apresentamos, então, três sugestões de leitura literária para ler e viajar em família, na quietude do jardim, nestas férias de verão.

Dupla página do miolo de O Alfabeto dos Países

O Alfabeto dos Países, de José Jorge Letria e Afonso Cruz, é uma obra que se compõe de 23 poemas curtos, alusivos a 22 países distintos, que, apenas obedecendo à ordem alfabética, vão atravessando continentes e fazendo paragens ao sabor das intenções e da mestria do autor, que já nos habituou a textos carregados de intertextos, dos quais espreitam áreas do saber como a História ou a Geografia, ao mesmo tempo que, problematizando questões sociais, económicas, ambientais e até políticas interrogam o leitor, convidando-o a ler o mundo sob diferentes perspetivas. As inúmeras curiosidades que integram os diferentes poemas transformam este álbum numa espécie de roteiro de viagem, do qual o conhecimento enciclopédico sai muito enriquecido, e a curiosidade altamente estimulada.

Pormenor do miolo de O Alfabeto dos Países (poema dedicado ao Quénia). Leitura que pode ser acompanhada pelo "livro-globo"(na imagem as páginas dedicadas ao continente africano)


O Mundo num Segundo, de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, é um álbum belíssimo, onde o encontro de culturas se torna imediato através do ingrediente tempo: no mesmo segundo multiplicam-se acontecimentos em todo o mundo. Ao leitor é oferecido um papel de personagem, de parte integrante dessa engrenagem que é a passagem do tempo, e o valor que cada um lhe atribui, de acordo com a zona do globo onde lhe coube nascer, ou escolheu viver.

Dupla página de O Mundo num Segundo
Convivem, nesta volta ao mundo, espaços interiores com espaços exteriores, de que são exemplo a casa, o carro, o elevador, a barbearia, a rua, a escola, o quintal, a estação de caminhos de ferro, a praia, o mar ou a floresta, que, por sua vez podem ser vistos enquanto realidades contrastantes, como campo vs cidade, trabalho vs lazer, agitação vs tranquilidade, tragédia vs comédia, tristeza vs alegria, obrigando a uma constante mudança de perspetiva, e favorecendo o encontro com o Outro. 


A encerrar a viagem, e para que o leitor possa confirmar as suas descobertas (ou descobrir o que ainda não conhece) encontra-se um planisfério, no qual estão assinalados os 23 lugares evocados ao longo da obra.

Dupla página de Se os animais escolhessem a sua nacionalidade
 Um registo diferente, a roçar o nonsense podemos encontrar em Se os animais escolhessem a sua nacionalidade, de Alice Cardoso e Cátia Vide. Trata-se de um livro bilingue, escrito em português e em inglês (que é também uma forma de encontro com o Outro, através da diversidade linguística). O registo humorístico de que se reveste este trabalho não deixa, porém, de apetrechar de curiosidades culturais ou históricas os pequenos textos que compõem cada dupla página, onde a ilustração, para além de uniformizar ambos os registos linguísticos, acrescenta sobretudo apontamentos humorísticos capazes de despoletar a vontade de compreender aquelas opções, ou mesmo de continuar o jogo das autoras.

Dupla página alusiva a Portugal em Se os animais escolhessem a sua nacionalidade
Esta breve seleção proporcionará, certamente, momentos ricos de descoberta e de partilha de saberes, que poderão partir do nosso pequeno mundo, que é a nossa casa e a nossa família até à grande casa que é o mundo e a alegre diversidade de povos e culturas que lhe dão cor e sentido.

Recuperando e atualizando algumas das sugestões que integraram o Programa ELF, propomos duas atividades que poderão transformar-se não só em momentos de aprendizagem coletiva, mas sobretudo em memórias afetivas felizes.

1. Planisfério literário

Imprimir (ou desenhar) os contornos de um planisfério e personalizá-lo de acordo com as descobertas que foram feitas nas obras lidas, associando, por exemplo, elementos que os autores tenham referido, ao país em questão (através de registos escritos, do desenho, da colagem...).

2. Jogo de Cartas

Imitando o jogo das famílias (também conhecido como Peixinho), criar "famílias" com elementos alusivos a alguns dos países presentes nas obras (ou outros). Poderá optar-se, em alternativa, por compor famílias de acordo com os continentes. Poderão incluir-se nestas "famílias" elementos alusivos à fauna, à cultura, à gastronomia, à raça... aproveitando as descobertas feitas nas sugestões de livros "para ler com um globo ao pé".


P.S. Se preferirem "ir para fora cá dentro", a partir dos livros, espreitem as sugestões que apresentamos para o dia de Portugal, e que têm por base a obra O Alfabeto dos Países.
(Partilhem connosco as vossas experiências! Divulgaremos aqui.)


Boas férias e boas viagens em família!

terça-feira, 30 de junho de 2020

Colorir Violinos

É verão e as férias grandes já começaram. 
Este é um tempo propício à leitura demorada e à descoberta inesperada.
Para que não faltem ideias de leitura e de atividades divertidas a partir dos livros, a encerrar o mês de junho propomos uma (re)leitura de As Quatro Estações, uma das obras que compõe a nossa seleção de verão, e uma mão cheia de ideias para tirar (ainda) mais partido desta belíssima obra de josé António Abad Varela, Emílio Urberuaga e Sarah Chang, inspirada no concerto de Vivaldi. 

"Os esquilos madrugavam para evitar o calor do dia e, à tarde, dormiam a sesta à sombra enquanto a suave brisa lhes acariciava o pelo vermelho e amenizava o calor" (pp. 20-21)

Trata-se de um trabalho onde a harmoniosa conjugação das linguagens verbal, icónica e musical, proporciona ao leitor uma viagem quase sensorial, onde convivem, por vezes de forma dicotómica, a serenidade da paisagem com a tempestade, o aconchego com o abandono, a alegria com a tristeza, a esperança com o medo, a vida com a morte, numa espécie de analogia com a própria vida e o seu caráter igualmente cíclico. A componente musical parece cumprir, aqui, a missão de potenciar os distintos climas emocionais sugeridos pela diversidade de episódios presentes na obra literária, que por sua vez foi construída para ilustrar a peça musical, permitindo, assim, várias possibilidades de apropriação e cruzamento dos vários intertextos que compõem o livro.



Nesta obra, o verão é apresentado como um tempo lento, que convida a sestas prolongadas e ao sonho. É a estação da abundância de alimentos, do nascimento das crias, do canto do cuco, do pintassilgo e das rolas, mas também das moscas e dos moscardos. É a época de armazenar, atividade partilhada pelos animais e pelo homem, como é o caso do lenhador. A linguagem do bosque (e da natureza) parece ser conhecida pelos seus habitantes, que se recolhem porque “o intenso calor anunciava a trovoada” (pp. 22), que, qual tempestade de verão, depressa volta a dar lugar ao brilho do sol.

Dupla página que anuncia o verão (pp. 16-17)

Para tornar ainda mais memoráveis as tardes de verão em família, apresentamos algumas sugestões de atividades em torno da obra.

1. Desenhar ao som do verão de Vivaldi


Esta obra constitui uma excelente oportunidade de encontro com a música erudita, e com os efeitos que esta pode ter em cada um de nós. Propomos a audição dos andamentos relativos ao verão, e o desenho livre simultâneo. (podemos também visitar esta interessante experiência)


CD que acompanha a obra
 2. Da música às palavras ou das palavras à música


Na origem da narrativa de José António Abad Varela está o concerto de Vivaldi (1720), que também terá escrito um poema para cada estação do ano (no blogue Música e Cultura encontramos mais informação sobre este assunto, assim como os referidos textos). 
Comparar o texto e a composição musical de Vivaldi com o trabalho final dos autores do livro As Quatro Estações pode revelar-se um interessante trabalho de descoberta de diferentes manifestações de arte em torno de um mesmo tema (neste caso as estações do ano).

"Depois, pouco a pouco, os trovões e a chuva afastaram-se e o bosque acalmou. Os esquilos e os pássaros sacudiram os corpos para se livrarem da humidade. O sol brilhou de novo e os esquilos voltaram a correr por entre as árvores." (pp. 24-25)
 3. Colorir Violinos

Recuperando a ideia do concerto para violino, propomos a construção, com recurso a cartão, de quatro violinos, que podem ser personalizados com ilustrações ou colagens representativas das quatro estações do ano. Podemos experimentar ilustrar ao jeito de Emílio Urberuaga, ou descobrir o nosso próprio jeito. Com os violinos podemos construir original mobile.

4. Um livro artesanal ou as minhas leituras de verão

Esta sugestão, para além de poder representar uma segunda vida para aqueles CDs que temos lá por casa, sem uso, poderá transformar-se numa original compilação de leituras de verão
Recolhemos alguns CDs, que podemos forrar com papel ou tecido, e unimo-los pelo orifício central com uma corda ou uma fita. Escolhemos os mais belos excertos de textos de verão, das leituras das férias, ou de outro tema ao nosso gosto, e registamo-los nos CDs, que funcionarão como páginas do nosso livro artesanal, que embelezaremos com desenhos, pinturas, colagens, "segredos"...
Em alternativa podemos fazer uma pesquisa sobre Vivaldi e usar o livro feito de CDs para escrever / desenhar uma breve biografia do autor.

Exemplo de trabalho realizado a partir da obra,
no âmbito do programa ELF: "o meu álbum de artistas" (família Dias)
5. Conhecer Sarah Chang

Para os apreciadores (e também para os que não apreciam tanto, pois poderão mudar de ideias!)), visitar alguns excertos do concerto da autora musical desta obra pode constituir um programa alternativo para aquelas tardes mais quentes, a pedir vagar... aqui fica uma sugestão:


 A todos desejamos boas férias e boas leituras em família!

sábado, 20 de junho de 2020

Representações do Verão na Literatura para a Infância

"O verão é o tempo grande", quem o diz é Maria Isabel César Anjo, no título do pequeno volume dedicado a esta estação do ano. Concordamos: verão pede vagar, pede um olhar demorado sobre a beleza que nos rodeia, pede mergulhos no verde dos campos, das montanhas, das florestas, dos rios e regatos... e pede livros! 



Fomos em busca do verão num conjunto de obras de potencial receção leitora infantil e encontrámo-lo em registos de diferentes épocas: descobrimos que as representações do verão de Aquilino Ribeiro, por exemplo, encontram eco nas de António Mota, e que o verão cantado por Eugénio de Andrade parece ser retomado por Manuela Leitão e Catarina Correia Marques... e descobrimos também que há na literatura mensagens que são hinos à natureza, que nos podem ajudar a restabelecer o tão necessário equilíbrio que nasce do conhecimento e respeito pelos seus ciclos, pelas suas estações, pelo seu tempo, e sobretudo pela sua generosidade.


Na literatura para a infância ainda encontramos as Quatro Estações do Ano (cujos limites se vêm tornando cada vez menos nítidos no plano real). Talvez como afirmação, como necessidade de recordar que somos todos habitantes de um mesmo cosmos (que tem as suas leis), talvez como alerta, como indicação de um caminho mais ecocênctrico  (alternativo ao exagerado antropocentrismo que tem vindo a caracterizar a sociedade).


Pormenor do miolo de O verão é o tempo grande

Da enorme sensibilidade que jorra dos quatro pequenos volumes de Maria Isabel César Anjo e Maria Keil (imagens acima) ao diálogo de linguagens que convivem em As Quatro Estações, de José António Abad Varela e Emilio Urberuaga, obra inspirada no trabalho musical de Vivaldi (falamos deste texto AQUI), ao humor e à leve sátira aos tempos modernos, que caracteriza O Zé e as Estações, de Luísa Ducla Soares e Raquel Leitão, até à riqueza sensorial que encontramos em Poemas para as Quatro Estações, de Manuela Leitão e Catarina Correia Marques, são evidentes as preocupações em materializar elementos característicos de cada estação, que contemplam aspetos ligados à fauna, à flora, mas também às ações ou hábitos próprios de cada estação, apresentando-os de forma bem definida e distinta, sem perder de vista a ciclicidade da natureza.

Pormenor da obra O Zé e as Estações, onde é possível verificar a presença de informação relativa ao tempo, à fauna, à flora e também aos hábitos (férias, gelados...)
Por vezes este trabalho é feito de modo implícito (mas eficaz), pela mão do ilustrador, que ao cenário e à ação da narrativa vai acrescentando informação sobre o passar do tempo, através da caracterização da paisagem. É o caso de uma interessante adaptação do conto popular inglês A Galinha Ruiva, de Pilar Martinez e Marco Somà, como podemos ver nas imagens abaixo. 





As obras que versam explicitamente sobre as estações do ano não se limitam, todavia, à apresentação do lado mais agradável de cada estação. Por exemplo, em As quatro Estações, de José Antonio Abad Varela e Emilio Urberuaga, o verão faz-se acompanhar de uma típica "tempestade de verão": 

Pormenor da obra As quatro Estações: excerto que acompanha a composição de Vivaldi "Trovoada de Verão"

As típicas tempestades de verão já marcavam presença na obra de Aquilino Ribeiro destinada à infância. No seu célebre conto Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia (Arca de Noé III Classe), a tempestade que acaba por levar a abóbora rio abaixo até ao moinho, deixando o Sr. José Barnabé Pé de Jacaré consternado é um dos elementos do enredo que completa todo o cenário de verão em que decorre a história, e que concorre para o seu divertido desfecho:
"- José Barnabé?
- Ué?!!
- Seria aquele papa-moscas ou o eco? E deitou a correr. Foi encontrá-lo à beira do rio, de olhos fitos na corrente, como se estivesse à espera de um bacalhau.
- Mulher - exclamou - lá se foi a aboborinha!
- Ai foi?! Pois se foi, nem telhado nem panelinha!
Em seu desafogo, mestre grilo fazia à boca da lura, para cigarras, ralos, rãs, sapos, a histórias - a sua história - da catástrofe dum dia de verão:
- Cri-cri-cri! Muito me eu ri!!! Ci-cri-cri!..."

Pormenor do texto Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia
Já em O dia em que o regato secou, o trabalho de António Mota e Sebastião Peixoto que completa a trilogia protagonizada pelos coelhos Bitó, Fabi e D. Fofa (Onde está a minha mãe, de que falamos AQUI, tem como cenário a primavera, e A casa da janela azul, tem como pano de fundo o inverno), é possível conhecer os hábitos de verão de uma grande diversidade de pequenos seres, como o facto de se refugiarem em tocas para fugir ao calor, e encontrar as representações mais terríveis do verão, como a seca e os incêndios. Neste interessante trabalho, a "tempestade" de verão é claramente apresentada como uma bênção:
"- Chuva de verão, chuva de verão! - gritou a cabra cabrela muito feliz (...)"
Das palavras que encerram este texto parecem, aliás, ecoar as vozes ancestrais ligadas aos rituais e celebrações dos solstícios:
"Quando chegaram à toca, e viram que no lugar do muro havia muita água, juntaram-se aos bichos que ali festejavam, e também dançaram com muita alegria" (imagem abaixo).  

Dupla página final de O dia em que o regato secou

Amoras
"Doces e formosas,
Talvez por serem da família das rosas
Recolho-as sempre no regaço"

Os aromas e os sabores do verão marcam especial presença na poesia. A coletânea Poemas para as quatro Estações dedica ao verão seis poemas, quatro dos quais em torno dos frutos: A que cheira o verão?, Na esplanada, Figo e Amoras, "ensinando" ainda ao leitor Como fazer o melhor castelo de areia, e o caminho para conhecer A menina de Sophia.

Pormenor da obra Poemas para as quatro estações: Na esplanada.
Falamos sobre esta obra AQUI, a propósito da Primavera, onde apresentamos sugestões de atividades.

Este verão sumarento marca também presença na coletânea Conversas com Versos, de Maria Alberta Menéres e Rui Castro, no divertido poema O almoço dos pardais:

Pormenor da coletânea Conversas com Versos
A poesia canta também o calor do verão, numa espécie de convite a abrandar. Quem não se recorda, por exemplo, do célebre poema Verão de Eugénio de Andrade (imagem abaixo), que integra a obra Aquela Nuvem e Outras?  

Pormenor da obra Aquela nuvem e outras: Verão.
Ou d'O Livro de Marianinha, de Aquilino Ribeiro e Maria Keil:

"Da minha varanda, defronte,
na luzerna e trevo da fonte
pastavam novilho e cordeiro,
qual deles mais lambareiro.

A mãe ovelha ficara no bardo
a mãe-vaca puxava ao arado.

Eu via-os comer, saltar, vadiar
enquanto caía um sol de rachar.

Era meio verão
inda a flor do trambolhão,
que anda com a sesta,
e a vagem da giesta
não sentia da estiagem,
a ardente bafagem.

No prado, por esta altura
tudo é vida de doçura."

Para que nada falte ao nosso verão, podemos seguir o conselho dos habitantes da obra de António Mota:

Pormenor da obra O dia em que o regato secou
Ou podemos seguir com Leonoreta de Eugénio de Andrade:

"Canção de Leonoreta

Borboleta, borboleta,
flor do ar
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta
Que me não levas contigo."


Demos, então, as boas vindas ao verão. Celebremos com a ajuda dos livros e das mensagens que a literatura encerra 
(e até a chuva de verão ganhará um novo significado).