quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Com o coração nos livros | de 2020 com amor

A encerrar um ano que ficará na memória de todos nós, sentimo-nos de alma cheia e de coração a transbordar. Apesar de 2020, e graças a 2020, a família ELF cresceu, novos livros conheceram novos leitores (e alguns conquistaram lugares especiais na vida de muitos de nós). 

Ao longo do ano, contamos com mais uma edição ELF, que nos fez regressar ao lugar onde tudo começou; criamos e dinamizamos as rubricas Fiquem em casa e (re)descubram o prazer e ler juntos e Calendário de Leituras de Advento, que possibilitaram experiências de proximidade e de novas abordagens aos livros; apresentamos mais de 130 sugestões de leitura, distribuídas por diferentes temas e rubricas, e mais de 100 propostas de atividades; estreitamos a comunicação com os nossos leitores no Facebook e no Instagram; continuamos a integrar as ações aLer+2027; fomos duplamente distinguidos com o selo Escola Amiga da Criança; e brindados com maravilhosas partilhas de experiências, que se traduziram em belíssimos trabalhos

Não é, portanto, de estranhar que estejamos de alma cheia e de coração a transbordar: OBRIGADA A TODOS! 

Em jeito de agradecimento, trazemos uma seleção de livros com coração dentro (pois ao coração todos falam). São quatro obras de 2020 que, em nosso entender, encerram uma poderosa e pertinente mensagem para uma era que se quer nova.

Estes quatro trabalhos, que se ligam pelo coração, abrigam quatro histórias de amor bem distintas entre si. A alma perdida, uma obra da polaca Olga Tokarczuk, prémio nobel da literatura, ilustrada pela inconfundível Joanna Concejo, dirige-se a pequenos e (sobretudo) a grandes leitores, e constitui uma poderosa reflexão sobre o ritmo frenético que atualmente levamos (e com o qual compactuamos), e as consequências de uma vida de superficialidade. 

Revemo-nos com facilidade em Jan, o protagonista, que depois de um episódio em que se esquece de quem é, recorre a uma sábia médica que lhe apresenta um curioso diagnóstico e um inesperado tratamento:

"- Se alguém pudesse olhar para nós lá do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que correm apressadas, transpiradas e muito cansadas, e que atrás delas correm apressadas as suas almas perdidas (...)"

"(...) O senhor tem de encontrar um lugar onde se sinta bem, sentar-se aí tranquilamente e aguardar pela sua alma. (...)"

Pormenores do miolo de A Alma Perdida

E foi o que Jan fez. Depois de encontrar uma casinha nos arredores da cidade, sentou-se à espera da sua alma. 
O reduzido texto verbal que integra a obra é compensado pelo espaço dado às ilustrações, responsáveis pelo caminho de leitura de cada um. 
Atendamos, por exemplo, em aspetos como a passagem do tempo (que nos é revelada pelo crescimento da barba e do cabelo de Jan), ou da transformação dos espaços, com a chegada da "alma" do protagonista, representada por uma criança. 
Esta história de amor, que termina como as dos contos de fadas, apresenta a Infância (o tempo da curiosidade e do deslumbramento) e a Natureza (com os seus ritmos e o seu tempo lento) como lugares de regresso à essência e de resgate do essencial:

"Desde então, viveram felizes para sempre e Jan passou a ter muito cuidado para não fazer nada demasiado depressa de modo que a sua alma conseguisse acompanhá-lo. (...)"

Pormenores do miolo de A Alma Perdida

A história de amor que se vive em Os sinais do Coração, um trabalho muito original, com texto do brasileiro Guilherme Semionato e ilustrações (bem nacionais) de Gabriela Sotto Mayor, é tão inesperada quanto insólita. Tal como a escolha anterior, é também um livro para ler muitas vezes, atendendo aos vários níveis de leitura que apresenta.
Detenhamo-nos, por exemplo, na observação das guardas (imagem abaixo). A transformação dos elementos que compõem a paisagem, embora nos forneça pistas valiosas, só no final da leitura revelará o(s) seu(s) sentido(s).

A história de amor que aqui se vive é protagonizada pelo Til e pela Cedilha que moram na palavra CORAÇÃO. E só acontece porque "(...) por vezes, mesmo as almas mais quietas querem estender a mão para alguém".

Guardas e pormenor do miolo de Os Sinais do Coração

E é então que o Cupido ataca. Depois de um divertido encontro, onde os dois se conhecem (excerto abaixo), esta história tem direito a tudo o que uma boa história de amor tem direito: o amor à primeira vista, o namoro, os cúmplices, "os do contra", a preparação da boda, a chegada dos convidados, o casamento e a festa, a lua de mel (e as suas peripécias), e a nova vida do casal, que passa a morar na palavra HABITAÇÃO.

"- Oi. Quem é você? - perguntou a Cedilha.
- Eu sou o Til.
- Tio? Tio de quem?
- Til, com l de lombriga.
- Ah! Então você não é tio de ninguém?
- Não. Sou filho único.
- Qual é o nome de sua mãe?
- Mãe. Todo Til nasce da palavra Mãe. Nós ficamos perto dela o máximo que dá, mas uma hora temos de viver em outras palavras.
- Aí, você veio parar aqui? (...)"

Este trabalho encerra a velha máxima sobre o poder que a literatura tem de tornar extraordinárias as coisas aparentemente "vulgares". É, com efeito, e tendo como cenário o dicionário, que os autores constroem um profícuo diálogo entre signos, significados e sentidos, capazes de abrir um amplo leque de leituras e interpretações (que podem ir, por exemplo, da simples história de amor às diferentes representações da família - até as mais controversas). 
O humor, que ora é conferido pelo texto, ora por apontamentos pictóricos,  associado à explosão sensorial que emana da ilustração, completam o cenário desta bonita história com coração dentro.

Pormenores do miolo de Os Sinais do Coração

A história de amor se se segue mora num delicado livrinho, onde as palavras se vestem de poesia e falam diretamente ao coração. Falamos de Coração de Pássaro, uma obra de Mar Benegas e Rachel Caiano, que conhecemos, quase por acaso, neste belo espaço limiano, onde os livros têm um lugar especial.
Nesta obra, o leitor entra logo em modo poético ao ler a apresentação das autoras (imagem abaixo), aspeto que apreciamos particularmente na Akiara.
Com a busca da poesia (e da beleza) como fio condutor, esta história de amor, protagonizada por Nana e Martim, é feita de sensibilidade e delicadeza, e traduzida para uma linguagem de que só os poetas são capazes.

"Porque os olhos de Nana eram um vulcão de areia lunar. Observavam um melro e transformavam-no num bosque.(...)"

"E Nana tinha um amigo. Era o seu vizinho, filho do padeiro. 
Ali permaneceram muito tempo juntos, escutando aquele diálogo interminável. E o Martim mostrou um bolo, quase acabado de fazer, e partilharam-no. E deram um beijo.
- Ah. Então eu também gosto de poesia - concluiu ele.
E o Martim pensou que a poesia eram pedras e búzios. (...)"

Pormenores da capa e ficha técnica de Coração de Pássaro

E é entre a aldeia de pescadores onde os dois vivem, e onde a menina tenta encontrar métodos para escrever poesia, a cidade para onde Nana parte em busca dos poetas, e o bosque, onde a alquimia tem lugar, que Nana e Martim vão construindo a sua história de amor, uma história com sabor a pão, a mar e a palavras. 

"O Martim, o filho do padeiro, só escrevia versos com farinha branca; amassava-os e metia-os no forno. Era o mistério do pão acabado de fazer. E despediu-se de Nana com um presente. Tinha forma de pássaro."

(E não resistimos, a propósito, a recordar aqui Petrini e Sepúlveda, quando no seu livro Uma ideia de Felicidade, referem que "há mais sabedoria num pão bem feito, do que num discurso para «arejar os dentes»")   

Pormenores do miolo de Coração de Pássaro

O livro que completa a nossa seleção é de autoria nacional, de Marco Taylor, e gostamos dele pelo seu caráter experimental e inovador. Trata-se de um livro às fatias, que integra a categoria de livro-objeto, e que contém também uma história de amor. Nesta obra, porém, é o leitor que decide como acaba a história: falamos de A história que acaba bem. A história que acaba assim-assim. A história que acaba Mal.

Pormenores do miolo de História que acaba bem, História que acaba assim-assim e História que acaba mal

É um livro onde predomina a imagem sobre o texto (que é residual), e que convida a refletir sobre as escolhas que fazemos, sobre as variáveis que controlamos e as que não dependem de nós. 
A paleta cromática escolhida (não ao acaso, dada a simbologia que encerra) dá o tom às três histórias. Os diferentes desfechos são materializados com a incorporação de cores e tons condizentes com os estados emocionais que emergem de cada história.

Pormenores do miolo de História que acaba bem, História que acaba assim-assim e História que acaba mal

Por cá, e porque gostamos que as histórias ELF acabem bem, pedimos de empréstimo ao Marco algumas palavras, e, ainda que "quando apaixonados, às vezes sejamos tolos", outras vezes, "quando apaixonados temos mais coragem!". 
A nossa paixão pelos livros e o nosso amor à leitura continuarão a marcar presença neste espaço.
Obrigada a todos.


Nota: No que respeita a novidades editorais da LIJ em 2020, falamos de outras obras a propósito das representações do ambiente na literatura; das representações da infância; dos avós que povoam a atual literatura infantil; e de leituras luminosas para dias cinzentos


Boas leituras e desejos de um feliz Ano Novo!

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